Em setembro, eu já tinha entrevistado e selecionado quatro das cinco personagens do projeto. Faltava uma. O problema é que a pessoa em questão não estava respondendo minhas tentativas de contato, então tentei procura-la pessoalmente no Terminal de Rio Doce, onde havia lhe conhecido. Infelizmente não tive sucesso. Dei três voltas no terminal, entrei no banheiro. Saí, espiei o que tinha dentro da lanchonete, espiei a sala dos fiscais. Ansiedade. Foi em meio à essas voltas que vi Nynah saindo de uma das salas, com um papel na mão, cabelos raspados e andar tranquilo. “Oi, tudo bem?”, a abordei e expliquei o trabalho, confiando que o acaso me daria sorte. Ela estava indo pagar uma conta, que era o tal papel. “Eu tenho muita história, então se você puder esperar, eu posso ajudar”. Esperei e de fato ela voltou, e disse que podíamos conversar no ônibus mesmo, porque este só sairia para outra volta em aproximadamente uma hora e meia, o que nos deu tempo de conversar bastante.
Nynah é como Dulcilene Lima gosta de ser chamada. “É porque eu não gosto muito do meu nome”, explica. A cobradora tem 34 anos e faz a linha Rio Doce/Conde da Boa Vista há 2 anos e 4 meses, mas é cobradora há 4 – antes, trabalhava no ônibus Maranguape I, da mesma empresa (Cidade Alta). Nynah colocava créditos numa loja de celular e resolveu mudar de profissão em busca de um trabalho mais certo, que pudesse ter alguma garantia “por mais estressante que seja”, como ela disse. “Eu gosto de ser cobradora”, falou pausadamente. “Mas meu propósito é melhorar. Por enquanto vamos por aqui mesmo”, completou. Perguntei se ela queria mudar de profissão, e ela disse que sim, que a sua intenção é fazer seleção para líder de terminal, ou fiscal, como a função é mais conhecida. “Eu acho que é mais tranquilo porque você sai da rua e o dinheiro é melhor, não vou ser hipócrita e dizer que isso não é importante. Até porque o estresse é o mesmo, afinal você lida com o público igual e tem uma equipe para reger, tem que lidar com todo mundo, fazer vista grossa num dia e fingir que não vê em outro. Ter jogo de cintura, e muito. E assim você vai levando, sem prejudicar a empresa nem seus colegas”, explanou a cobradora.
As aspirações profissionais de Nynah são fruto de um processo de amadurecimento muito delicado, consequência de uma série de fatores que foram formando-a aos pedaços. Filha de uma empregada doméstica, a mãe da cobradora passava o dia fora para poder sustentar a família. Em casa, ela passava os dias com o pai alcóolatra e o irmão pequeno. “Meu pai bebia muito, minha mãe trabalhava fora e isso tudo resultava numa vida complicada, nada tranquila. Imagina uma pessoa dentro de casa, que não fazia nada só beber e me esculhambar”, lembra Nynah. Aos 13 anos, ela engravidou de Gabriela, que hoje tem 23 e mora num convento – ela busca ser freira, apesar de Nynah não ser nada ligada à religião (“você já viu o filme O Nome da Rosa? Mostra bem como é a religião católica que o povo não quer ver”). “Meu irmão acha que ela foi pra lá porque sofreu muito. Eu tive ela quando muito criança, tinha apenas 14 anos. Não sabia de nada, não tinha estrutura nenhuma para cuidar de outra criança sozinha. Aí meu irmão acha que ela se isolou no convento porque tem trauma do que viveu, sendo criada por outra pessoa, que era minha tia. Mas meu irmão esquece tudo que a gente passou como família, né? Todos nós como um todo. Nossa família desandou, não sei dizer exatamente quando porque eu era muito pequena, mas a gente viveu bem por uma época, vivia bem mesmo. Depois foi toda essa história que lhe contei”, desabafava. Assim como nos roteiros, a vida também tem pontos de virada. E Nynah exigia minha concentração ao contar os dela, pois a cobradora era uma excelente contadora de histórias – e detalhista, como ela mesma se descreve.
“Eu estava arrumando as coisas da minha mãe, uma mala que tem lá, tirando coisas velhas e procurando outras, foi quando eu achei uma carta dela, da minha mãe, que não havia sido enviada. Sabe o programa Porta da Esperança, do Silvio Santos? Existia esse programa, que você contava sua situação difícil e Silvio Santos ajudava. Eu me lembro que abria uma porta e você ganhava, algo assim. Na carta estava o endereço do programa, o nome da minha mãe e nosso endereço. Eu abri e comecei a ler. Ela contava que tinha um filho pequeno e uma filha muito nova que havia engravidado cedo, e que ela fazia faxina para sustentar a casa e o marido não trabalhava e só levava a vida a beber. Ela contava que a casa precisava de reformar e estava precária, e ia cair. Nessa casa, onde morava eu, meu irmão, minha mãe e meu pai, eram necessárias reformas urgentes, como a construção de um quarto extra. E dizia como ela queria que isso fosse resolvido. Enquanto eu lia, comecei a chorar. Porque minha mãe sofria em silêncio. Ela via aquilo tudo e não podia fazer nada, sofrendo calada mesmo. Foi aí que eu tive a noção de que eu precisava cuidar dela e das coisas a partir de então. Tentar ser uma pessoa melhor pra ela, para mim e pra minha filha. Comecei a cuidar da casa e por causa disso até hoje vejo as coisas de outra maneira. Meu irmão e cunhado acham que minha filha foi embora por causa disso, mas ele esquece que todos nós passamos por isso. E essa história é muito presente comigo, sempre estou lembrando. Graças a Deus tudo isso passou e a reforma foi feita, a gente não passa mais por esse tipo de problema. A gente vive bem, temos um lugar para dormir sem goteira, sem problema. A pintura toda da casa fui eu que fiz. Hoje eu sou muito caseira, penso em primeiro lugar na minha mãe e o dinheiro que ganho é para ajudar em casa, e passo minhas folgas lá assistindo filmes, adoro filmes da Marvel, mas gosto de vários outros. No momento vai estrear Inferno, de Dan Brown. Já li o livro e agora quero ver o filme. Fico com meus cachorros, amo demais eles. Tenho três, uma bem pequenininha, a Feia, uma pastora alemão grandona, Capitu, e um vira lata que achei no lixo bem novinho, Sorte. Eu te mostraria um vídeo deles agora, se meu celular não tivesse sido roubado”, narrou a cobradora. Hoje, ela ainda mora com a mãe no mesmo lugar. Seu pai morreu há 14 anos e seu irmão mora com o marido em Dois Irmãos.
Mães e Filhas
Nynah não tem contato com o pai de sua filha. “Quando ela nasceu, ele disse que não era dele, que eu saia com outras pessoas. Insistia que não era dele, mas como diz o ditado, filho de puta tira a mãe da culpa. A menina era ele todinha, os olhos verdes com macha azul no mesmo lado do olho. Minha vizinha levou ela para ele ver quando ela nasceu. Ela é ele todinha, e essa foi a primeira vez que ele a viu. Quando ela estava maiorzinha, ela levou de novo – mesmo assim ele não ligou, olhou, pegou mas não manteve contato”, disse Nynah. “Mas para você ver como são as coisas, os outros filhos dele eram loucos para conhecer minha filha, mas tinham medo de me procurar porque eu tinha cortado os laços com o pai deles. Aí um dia eu parei para comprar um pastel para mim na esquina de casa, em Caixa D’água, aí foi quando eu comecei a lembrar de um menino que é gay e mora lá no bairro, foi muito do nada, ele nunca falou comigo, eu nunca falei com ele, só nos conhecíamos de vista porque ele chamava muita atenção, todo apapagaiado. Mas normal, a gente só não se falava, eu lembrei e estranhei até. Na fila do pastel, chega uma menina super nervosa, dizendo ‘gente, mataram Léo’. E eu, ‘que léo? ‘Léo bicha’. Fiquei espantada porque estava pensando nele bem na hora que ele havia morrido. Parece que pegou uma briga porque estava esculhambando todo mundo, era aquela pessoa baixa. Fiquei assustada, olhei para a menina do pastel e disse que estava pensando nele naquele exato momento. Só que a surpresa maior veio depois”, disse Nynah, mais uma vez provando que os pontos de virada no roteiro de sua vida fariam Hollywood morrer de inveja.
“Esse Léo era filho do irmão da minha filha, ou seja, sobrinho da minha filha. E eu não sabia de jeito nenhum, só vim saber depois que ele morreu, através da minha vizinha. Essa mesma vizinha me disse que Manoel, o pai desse Léo, era doido para conhecer minha filha, irmã dele. Ele e o irmão mais velho já mandavam recado para minha mãe querendo conhecer Gabriela, mas minha mãe não me passava o recado. Então eu disse para minha vizinha que ele me procurasse sim, que podíamos conversar e tentar marcar um encontro com Gabriela. Dei meu número de celular e ele foi na minha casa, na mesma hora liguei para Gabriela – ela ainda não estava no convento, e sim na casa da minha tia, em Carpina, onde moravam. ‘Filha, seus irmãos querem lhe conhecer. Você quer conhecer eles?’. Ela pensou, pensou e pensou e disse ‘quero, mainha’. Disse que nesse caso ela fosse lá em casa domingo, que a gente ligaria para eles virem quando ela estivesse aqui. Quando foi no domingo, ela chegou e os dois foram para minha casa e levaram os filhos, sobrinhos de Gabriela. Eles se conheceram, se abraçaram, me agradeceram pela oportunidade e puderam conversar. Ela tinha uns 19 anos. Faltava apenas conhecer Cássia, a outra filha do pai de Gabriela, que era mais nova que ela. Então os meninos a levaram para conhecer e Cássia chorou muito quando viu minha filha, porque elas eram idênticas, muito parecidas mesmo. A única diferença delas é que Cássia não tem aquela mancha azul dentro dos olhos verdes que minha filha herdou do pai, mas o resto era muito igual: boca, cabelo, cor... Iguais a ele”, narrava Nynah.
“Mas ela no convento agora não pode mais ver ninguém, não entendo essa igreja católica. Ela tocava violão na igreja e fazia oração numa rádio religiosa. Mas também trabalhava e estudava para fazer educação física. Ficou noiva de um rapaz da marinha que viajava muito. Então de repente ela conversou comigo e disse que ouviu um chamado de Deus, e que precisava ir ajudar o próximo como freira. Pediu minha opinião e eu disse ‘bom, é isso que você quer, então não vou lhe prender, você quer ir você vai’. A primeira coisa que ela fez foi terminar esse noivado. O rapaz sofreu muito. Era muito apaixonado. Até um dia desse ele me chamava de sogra, e queria entender o porquê dessa decisão dela. Nossas famílias eram unidas, se tratavam bem, ele gostava mesmo dela. Era aquela coisa que tinha tudo para dar certo, sabe? No casamento do meu primo ela fez questão de dizer que o próximo seria o deles dois. Mas agora o rapaz está com outra pessoa. Depois de desmanchar o noivado, largou os estudos. Ainda ficou trabalhando como balconista de uma farmácia. Aí enfim pediu para sair do trabalho e seguir a nova vida dela como queria. Juntou as coisas, foi e está lá em juazeiro do norte agora, no tal convento. Minha mãe até foi visita-la agora no início do mês. Mas dessa história meu irmão não gostou, acha que ela fez isso pra fugir do passado na família. Espero que ele saiba que eu não podia criar ela. Minha tia que criou e educou, ficou noites acordadas, cuidou de dor de ouvido, febre. Eu não me orgulho disso não, tenho muito arrependimento, queria ter vivido isso com ela criança. Se talvez eu tivesse aquela idade nos dias de hoje nada disso teria acontecido, ou talvez ela não tivesse ido para um convento (se ela tivesse engravidado na idade “certa”). A minha cabeça era pra rio, jogo, brincar. Pior que eu tinha tudo para dar certo se tivesse estudado. Mas como eu disse, nossa família que vivia bem desandou, todos os livros que eu tinha eu nem queria saber”, desabafava a cobradora.
“Mas eu guardo muita coisa. Você ia tirar de letra esse TCC só com minhas histórias. Às vezes eu converso com Fabiana, minha mulher, e ela conta que faria tudo pelos dois filhos, e eu digo que não sei o que é isso, porque nunca perdi uma noite de sono tirando temperatura de febre da minha filha. Nunca fiz nada. Isso dói. Às vezes eu escuto ela falando com muito carinho dos filhos, parece um bicho brabo que defende a cria. E eu não sou assim. Ela pergunta se eu tenho saudade de Gabriela, digo que sinto, mas não tínhamos habito de dar abraço, beijo, eu sentia até vergonha de expressar. Mas a gente ia muito no cinema, ela gostava muito de filmes assim como eu. Se tivesse com o celular te mostrava uma foto da gente lá; última vez que saímos vimos um filme da Marvel, comemos pipoca, fomos pra uma lanchonete. A gente se aproximou quando ela cresceu mais, tipo uns 17 pra 18 anos, e foi entendendo a minha situação na época que ela nasceu. Fiz até uma carta para ela explicando tudo isso, mas não tive coragem de entregar, porque ela era mais nova. Mas quando ela começou a me visitar na minha casa, uma vez resolvi puxar essa conversa e explicar tudo ao meu modo. E ela não dizia nada, ouvia calada. O que desencadeou essa conversa foi que nessa época eu morava com uma pessoa, uma companheira que escrevia as coisas da nossa vida num diário. Aí uma vez minha filha estava passando uns dias lá e achou esse diário embaixo do travesseiro, no meu quarto, onde ela estava vendo filme. Minha companheira viu ela lendo o caderno e ligou para mim avisando, eu disse ‘ok, quando chegar do trabalho eu falo com ela’. Aí quando cheguei me sentei com Gabriela e disse que minhas relações com homens não eram nada frutuosas, sofria, eu não sentia nada e não tinha nada a ver. Ela disse que tudo bem. ‘Mainha, a senhora não vai deixar de ser minha mãe por isso nunca’. A partir daí ela ficou sabendo de tudo, nunca escondi nada. Ela não conheceu Fabiana porque não tinha tido a oportunidade, tinha muitos desencontros, mas falava com ela pelo telefone, e aceitava a gente e a mim”, contava, serena, em tons de saudade. Aproveitei para perguntar se a sua mãe também aceitava a sexualidade dela. “Minha mãe sabe como é, né. Ela sabe, mas finge que não sabe. Fabiana vai na minha casa, onde minha mãe a trata super bem, mas finge que não vê o namoro e pronto, eu também não digo nada. Mas toda mãe conhece o filho que tem”. Por coincidência, bem nessa hora Fabiana, a esposa que também é cobradora de ônibus, chegou para cumprimenta-la. “Vem cá, meu amor!”, disse Nynah, enquanto Fabiana subia no ônibus que estávamos. Elas se abraçaram, Nynah lhe deu um beijo na bochecha e explicou-lhe meu trabalho. Fomos apresentadas e aproveitei para fotografá-las juntas.
Amor rodoviário
Uma vez, Nynah ouviu de um passageiro que ele iria andar no seu ônibus todos os dias, que ela era muito interessante e que ele queria lhe fazer companhia. A cobradora reagiu ao assédio afirmando que não, que ele fosse livre para pegar qualquer outro ônibus e a respeitasse, afinal ela era uma mulher casada. “Mandei que parasse com isso, daí ele sumiu, ainda bem”, lembra. Na verdade Nynah não era casada, mas namorava há dois anos com Fabiana, outra rodoviária daquele terminal – onde elas se conheceram. “Ela tava sentada bem ali”, disse Nynah, apontando para um banco pela janela. “Quando saí do Terminal de Pelópidas, em Paulista, onde trabalhava anteriormente na linha Maranguape I, vim para cá (T.I. Rio Doce) e foi bem nesse começo que nos conhecemos. Estava sentada com outra colega e vi Fabiana descendo com uma sacola com um bolo, ela estava de farda aberta com uma blusa por dentro e o cabelo meio desarrumado, porque o cabelo dela é bom, não é feito o meu. Ela passou e minha colega fez um comentário de que ela estava interessada em mim. Disse que não havia prestado atenção nela”, contava Nynah, ironicamente, com riqueza de detalhes.
“Aí a gente ficou e como trabalhávamos no mesmo terminal, eu provocava uns encontros, pois sabia que quando ela descia ia direto para uma lanchonete, no que eu já ia para lá também. Começamos a conversar, a nos conhecer melhor. Uma outra colega ajudo a juntar também porque diz ela que eu sou uma boa pessoa, uma pessoa certa para Fabiana. Ela dizia ‘vai, faz alguma coisa, ela tá interessada em tu. Ela não quer aceitar direito por causa do último relacionamento’. E eu dizia, ‘ela não tá não, não tá não’. Mesmo assim, um dia eu liguei para uma floricultura e pedi que entregassem um buquê de rosas lá onde ficava o fiscal dela, para que ele lhe entregasse. Deixei uma amiga olhando para dizer a reação, porque vai que ela jogava no lixo? Fabiana disse que se surpreendeu e na hora já sabia que era eu quem tinha mandado. Disse que cheirou as rosas, me procurou mas eu já havia ido embora - estava muito nervosa, me tremendo todinha, peguei o primeiro ônibus e fui pra casa. Quando eu estava chegando em casa, ela me ligou e agradeceu, dizendo que sabia que era eu. Então começamos a namorar dia 06 de outubro. E pronto, tá até hoje. Ela tinha medo de se envolver com alguém do terminal, por isso tive receio. Teve um momento que ela chegou a mudar de terminal para evitar contato, mas essa minha amiga fazia a ponte e dizia que ela, mesmo distante e receosa, estava interessada em mim. Quando assumimos o namoro, ela voltou para Rio Doce, onde está até hoje”, disse uma sorridente Nynah. Perguntei se ela já havia sofrido homofobia, com ou sem Fabiana. Ela disse que nunca sofreu agressões diretas, porque “ninguém teve coragem de dizer”, mas que recebo olhares todos os dias. De passageiro e colega de trabalho. “Você sente o julgamento. Colegas de trabalho já me disseram ‘que não gostam de falar com esse povo’. Esse povo é eu, Fabiana e outras mulheres aqui. Já aconteceu também de pegarem foto de homem nu e chegar mostrando para Fabiana, dizendo que gosta é disso, coisas assim. Tudo começa com brincadeira, tiram liberdade com a gente, aí quando a gente brinca de volta, se defende, essas coisas acontecem. Eu disse para essa pessoa (que mostrou a foto) que nunca mais fizesse isso com a gente, e que se ela acha ruim conversar conosco porque fulano ou cicrano podem achar coisa dela, ela que parasse de ligar para isso, porque ninguém ali pagava suas contas”, afirmou.
Malabarismo
Nynah mora em Caixa D’água, Olinda, na região de Beberibe. Descreve sua rotina até o terminal como um “malabarismo” – sendo Nynah os próprios pinos de malabares, indo de ônibus em ônibus até o destino final, ainda que more na mesma cidade onde trabalha (o que talvez assuste aqueles que pensam em Olinda como uma cidade pequena, onde só existe tapioca, Alto da Sé e carnaval). Assim que sai de casa, pega o primeiro transporte, o ônibus Caida D’água, que a deixa no terminal de Xambá, também em Olinda. Lá, ela pega o ônibus T.I. Xambá - Getúlio Vargas/Carlos de Lima, desce em Bairro Novo, área nobre da cidade, em qualquer parada. Só então ela espera pelo ônibus que finalmente lhe deixará no terminal de Rio Doce, onde trabalha (esse pode ser qualquer um que tenha “Rio Doce” no nome). Para voltar, ela pego qualquer ônibus aqui do terminal que vá para Peixinhos, onde passam os ônibus para Caixa D’água. Perguntei se ela gostava do trajeto que fazia durante o trabalho. “É bem tranquilo. A melhor parte do trajeto é a beira mar ali na entrada de Olinda, depois da Praça do Carmo. De noite é lindo porque a lua tá linda, eu gosto de ver. Não sou muito de praia mas adoro a paisagem, a luz da lua na água, é perfeito o espelho d’água. Imagino um monte de coisa, imagino que eu estou ali, que eu posso descer, que eu vou... Gosto muito de imaginar coisas quando vejo a luz da lua”, narrava Nynah.
“Se eu fosse prefeita de Olinda eu iria destruir a Av. Presidente Kennedy e aquelas paradas idiotas. Acabava com ela e fazia novamente com um corredor exclusivo de ônibus que fosse exclusivo mesmo, com fiscalização e tudo. Só ônibus e com as paradas no lugar certo, e não esse beco que é um labirinto para o ônibus passar. Isso causa acidente todo dia, quando chove é um terror. Pra que aqueles ferros ali? Só para o pessoal se acidentar”, conta Nynah. A Avenida Presidente Kennedy é um dos mais importantes corredores de transporte coletivo da cidade, além de uma das principais avenidas. Ainda assim, o descaso da prefeitura com ela é alarmante. Ano após ano, o estado da avenida segue provocando revolta nos moradores e comerciantes das redondezas, incomodados com os buracos, a desorganização, o fedor e os alagamentos constantes. Não lembro de um ano sequer na minha vida em que não ouvi nos jornais sobre o estado dessa avenida e o “caos” (palavra preferida da imprensa para descrevê-la) que ela representa, principalmente em épocas de chuva.
Nessa conversa sobre a rotina de trabalho, pergunto a Nynah sobre o sindicato. “Eu nem sei onde é a sede do sindicato, para ser sincera. Só conheço alguns participantes que as vezes vem aqui, e digo oi e tchau só. Não me envolvo porque é perda de tempo, porque é muita conversa politicamente correta que no fundo no fundo é só correta pros empresários e para eles, e não pra gente. Falam que vão resolver as coisas aqui, mas na prática a história é outra. Não me meto”. Correndo o risco de me repetir, não consigo deixar de notar que mais uma vez como as respostas das cobradoras que entrevistei convergem neste assunto. Me resta concluir que o sindicato está falhando e muito em se comunicar com seus sindicalizados. Mais uma vez: sintomático.
Passageiros plurais
“A melhor parte da profissão é a última viagem, quando eu sei que tô largando para ir pra casa. A pior é quando me deparo com passageiros mal educados, que sabem que estão errados mas querem impor suas vontades do mesmo jeito. Por exemplo, teve uma senhora que chegou aqui, sentou e disse ‘eu quero descer no banco”. Mas ela não especificou se era banco de feira, banco de praça, que banco que era, eu tinha que adivinhar. Aí eu disse, ‘que banco?’ e ela continuou: ‘no banco!’, aí depois que passou Olinda todinha, ela fez ‘e aí, já passou do banco?’, e eu ‘senhora, você precisa me dizer q banco é’, riu. Rimos, na verdade.
O Rio Doce/Conde da Boa Vista é a linha da vasta maioria dos passageiros que trabalham e estudam no centro cidade. Apesar da anedota acima, ela considera esse público “um pessoal tranquilo”.
“Tem muitos passageiros que sempre conversam comigo, fiz um amigo que infelizmente não vem mais porque se mudou, mas ele vinha sempre, era policial. Tem uma dona de casa que toda noite vem também, o pessoal que trabalha na cidade é tranquilo. Mas nem todos os passageiros são assim, tem uns que sinceramente.... Querem ser meu pai, minha mãe. Já teve uma passageira dizendo que meu cabelo não devia ser desse jeito, porque eu parecia um homem e isso faria as pessoas comentarem coisas sobre mim. Eu sempre corto ele baixinho, na máquina. Ela disse que era muito feio. Eu olhei para ela e disse ‘sabe, eu tô com uma conta em casa. No valor de 190 reais. É a fatura do meu cartão, eu posso trazer ela amanhã para a senhora pagar? Porque se tá se metendo na minha vida então que pague minhas contas’, eu disse mesmo, afinal o cabelo é meu”, contou Nynah, novamente me fazendo rir.
Nynah conta que sente alguns incômodos físicos no trajeto, principalmente olhos e ouvidos – segundo ela, o barulho da rua, do rádio do motorista e dos passageiros é danoso. “Eu sinto dores no canto do olho. Desde sempre nessa região central do rosto que eu não sei se é estresse diário ou vista, mas só sei que por mais tranquila que eu seja existe o estresse aqui. Escuto muito de passageiro ‘eu pago seu salário’, me cobrando coisas, dizendo que era para ter parado onde ele deu a mão, aí eu respondo “não é taxi não, senhora, a parada é essa aqui”, isso acontece muito na Boa Vista porque as paradas são muito próximas. Isso tudo gera estresse”, desabafa.
Pré-conceitos
“Às vezes que me dão bom dia e eu já sei que a pessoa não é daqui. Sério, chegou aqui um rapaz essa semana, negro, o povo logo tem preconceito quando vê negros né, mas esse rapaz subiu, deu boa tarde, perguntou como eu estava, disse que tentou trocar o dinheiro e não conseguiu. Era uma nota de vinte reais. Ele pediu desculpas e eu logo perguntei ‘você não é daqui, né?’, e ele disse ‘sou não, sou de Curitiba’. Logo vi. Tem passageiro que pergunta as coisas com tanta educação que dá gosto ajudar, mas uns nem olham pra minha cara, e quando olham é como se tivessem chupado limão e eu tivesse culpa pelos problemas deles”, reclamava a cobradora.
“Outra vez subiu uma menina aqui, de tatuagem, que depois dessa história eu me policiei muito com julgamentos. Ela era cheia de tatuagem – tenho nada contra, tô até pensando em fazer uma-, com cicatrizes, dreads, meio desprovida visualmente, digamos assim. E eu achei que ela ia assaltar o carro, porque ela era assim, ‘amaloqueirada’. Mas não, ela me surpreendeu. Chegou aqui e deu boa tarde, aí já me quebrou, porque eu não estava esperando isso. Ela disse ‘cobradora, boa tarde. Eu tô indo buscar minha avó no hospital, mas eu não tô com a passagem completa, só a metade. A senhora deixa eu ficar aqui na frente? Quando eu voltar para casa com ela, minha avó vai pagar minha passagem’. Eu fiquei impressionada com a educação dela, porque ela fez algo que muitos não fazem, a maioria que senta aqui na frente sem pagar não fala nada, desce e pronto. Aí eu disse ‘não, de jeito nenhum, você pode passar a catraca e ficar com o seu dinheiro, não tem problema’. Ela me agradeceu muito, e todo o pré-julgamento foi embora. Tá vendo como são as coisas? Muitas meninas com farda de colégio e curso caro passam com uma cara tão feia, não falam nem boa noite, mas uma menina claramente humilde, extremamente sem condições, tinha uma educação fora de série. Julgamento infelizmente acontece. Até porque eu mesma já fui olhada em lojas e bancos, recebi vista grossa talvez por estar de bermuda ou sandália. É do brasileiro isso”, disse.
Pequenas Coisas
Depois da nossa conversa, chegou a hora do ônibus partir. O Rio Doce/Conde da Boa Vista para na frente da minha casa, então fui nele junto com Nynah. A conversa foi leve: ela me contou sobre as coisas que amava, como filmes e seus cachorros. “Felicidade para mim é chegar em casa e encontrar minha mãe bem, dormindo tranquila, sem peso nenhum na consciência. Saber que consegui fazer o certo, ou pelo menos eu acho que fiz. Eu tento fazer o meu trabalho correto, por mais que ouça coisas dos passageiros eu deito tranquila de noite porque sei que tô fazendo o que tem que ser feito. Cuido do ônibus, faço limpeza e higienização dele, e faço porque gosto. Outra coisa que me faz feliz são minhas cachorras. Quando minha pastora alemão me dá um abraço de urso quando chega em casa, e a outra menorzinha já vai pegando minhas meias. São coisas mínimas que me fazem muito feliz, quando por exemplo estou num momento nosso com Fabiana, quando ela liga de madrugada, coisas assim não tem preço”, disse Nynah. Ela perguntou se eu tinha recomendações de filmes, e me recomendou outros, como Código Da Vinci e Menina de Ouro. O primeiro emprego de Nynah foi como ajudante de um alfaiate, e seu pai queria que ela fosse policial. Mas Nynah disse que se fosse para fazer faculdade, seria algo na linha da engenharia mecânica ou psicologia, porque acompanhava os livros de Ana Beatriz Barbosa, como “Mentes Perigosas”. Desci do ônibus e, por coincidência, encontrei com Nynah de novo em janeiro, num dia em que estava voltando do centro da cidade. Nos abraçamos e, dessa vez, ela havia comprado outro celular – disse que estava com WhatsApp, e que eu poderia tirar qualquer dúvida por lá, se quisesse. Também disse que comentou sobre o meu trabalho com alguns passageiros e que passou o ano novo com Sorte, Capitu e Feia, seus três cachorros-filhos que têm medo de fogos.