Era sábado e eu estava no Rio Doce/CDU voltando do Espinheiro para minha casa, em Olinda, quando conheci Cida. Na mesma manhã, antes de subir no ônibus, tentei entrar em contato com algumas cobradoras para esse trabalho. Eu as conheci no terminal de Rio Doce, onde coletei seus telefones para que a gente se falasse no sábado e enfim marcasse um dia legal para a entrevista. Só que nenhuma delas atendeu. Desespero. Elas são muito ocupadas e não vão perder tempo comigo, já pensei. Falei com minha mãe no Whatsapp, desabafando. Mainha disse: “tu pega tanto ônibus. Por que não fala com elas na viagem mesmo?”
Eu fiquei tensa, porque imaginei que estaria atrapalhando o trabalho delas e que não deveria fazer isso. Mas a voz da minha mãe estava ecoando na minha cabeça, porque o tempo corria e eu não podia ir de novo ao terminal naquele momento. Foi aí que eu entrei no ônibus e vi Cida. Eita, cobradora mulher! Era um sinal? Bom dia! Bom dia. Sentei bem perto dela. A observei. Uma senhorinha estava conversando com ela sobre assuntos que eu não consigo lembrar, porque eu estava nervosa. Elas riam. Depois Cida, que até então era apenas a cobradora simpática que eu observava de soslaio, ajudou uma moça que não sabia onde descer. Já estávamos na metade do trajeto. Eu suava frio. Se quisesse falar com ela, agora era a hora.
Então eu a abordei, contei sobre o projeto e descobri seu nome: Aparecida Silva. Ela sorriu e perguntou como seria a entrevista. Eu disse que podia ligar para ela e marcar uma viagem com ela no CDU. Ela revelou que tinha 44 anos, mas eu achava que era bem menos. Daria uns 26, 27, e ela sorriu de novo. Uma semana depois, liguei para o celular do motorista que viaja com Cida, pois o dela havia sido roubado. Ele me disse que na segunda-feira eles iriam sair às 5h50 do terminal de Rio Doce e que eu podia pegar aquela primeira viagem. Marcado. “Lara, bom dia! Você quer café?”, foi como Cida me recebeu. Aceitei e, depois de alguns minutos, a viagem começou.
Aparecida é cobradora em Recife há quase dois anos, quando veio de São Paulo para Pernambuco - mas já trabalhava na Mobibrasil, empresa do Rio Doce/CDU, antes de vir para cá. A paulista, como é chamada no Terminal, é casada com um homem, que é motorista de caminhão, e tem dois filhos, um menino de 12 anos e uma moça de 19, que está fazendo um curso para ser enfermeira. “O menino está no sexto ano, e enchendo minha casa de bicho. Dois cachorros, cinco galinhas, patos, dois passarinhos e agora um terceiro cachorro, uma cadela que ele pegou na rua”, contava Cida até que um passageiro entrou. Pausa. Bom dia! - ele passou e então ela continuou: “Meu filho tem uma infância boa. Eu pensei que ele não ia gostar de vir pra cá, mas tá gostando. A gente mora num sítio pequeno, mas tudo que ele acha na rua ele trás. Ele trouxe um cabrito uma vez, e eu sabia que tinha dono, tive que ir com ele lá devolver”, contou, rindo. Apesar de morar a pouco tempo em Pernambuco, Cida conhece várias cidades do interior, como Limoeiro, Passira e Riacho das Almas. Cida tem ensino médio completo e fez curso básico da informática e de datilografia. “Era muito bom datilografar”, lembra a cobradora, que antes da atual profissão fazia higienização de bactérias em aviões na TAM, com aerosol. “Eu quis ser cobradora porque realmente acho um trabalho legal, eu gosto do povo, de estar no meio da população, entre muitas pessoas. Eu gosto de ouvir essas pessoas e eu me divirto aqui, porque gosto de falar muito”, ela me disse. O contraste com o seu antigo emprego era grande: no avião ela trabalhava com um grupo de cinco pessoas usando um pesado uniforme contra bactérias do ar, uma veste especial que não permitia que eles conversassem durante o trabalho. A socialização só acontecia na hora do café ou da janta. “Aqui no ônibus converso toda hora, todo instante”.
SP-REC
Cida e sua família vieram no final de 2014 morar em Lagoa do Carro, interior de Pernambuco, para ajudar no tratamento do sogro de Cida, que está com câncer de próstata e estômago. “Graças a Deus ele está melhorando”, contou Cida, que vinha com a família visitá-los de três em três anos. Em 2014, perceberam que era necessário ficar mais tempo para ajudar. A meta é voltar para São Paulo depois de 5 anos, e segundo Cida as coisas estão caminhando para que ela seja cumprida. “Vimos meu sogro debilitado, triste, inchado. Mas agora que viemos ajudar ele já está bem melhor”, disse. Ela e o marido arrumaram o pequeno sítio em que seus sogros moram em Lagoa do Carro e venderam um terreno anexo que estava abandonado. Também ajudaram a trazê-lo para as clínicas no Recife. Cida não sabia da existência do Hospital das Clínicas, na Várzea, nem do Hospital da Restauração, no Derby. Precisaram atirar no escuro e descobrir os lugares gratuitos sozinhos. “Agora a gente conhece tudo”, afirma. “Outra coisa importante foi aposentar os pais dele. Está cada vez mais difícil mandar dinheiro para eles, então o dinheiro da aposentadoria foi uma ajuda. Mas a gente não teve muita facilidade. Tivemos que pagar advogado para ajudar a gente”, completou.
O sol de Recife é quente
“Eu sinto que aqui eu tenho que falar um monte de vezes o que quero dizer até que as pessoas entendam o que estou falando”, Cida me disse quando perguntei qual era a principal diferença entre Recife e São Paulo. Mas o que me chamou a atenção (nunca fui à São Paulo) foi quando Cida falou do sol. Que era diferente. “O sol aqui é quente, muito mais quente”. Cida trabalha na linha Rio Doce/CDU, que passa por pouquíssimos trechos arborizados. A Avenida Caxangá, a Encruzilhada, a Madalena e a Rua General Polidoro são alguns exemplos de trechos realmente quentes que ela passa todo dia. “Estou aqui para ajudar, mas tenho muita saudade da minha família em São Paulo. Todo dia penso em ir embora”, desabafou. “Em São Paulo eu me divertia mais. Aqui é tudo longe e eu ainda não me sintonizei direito. Lá a gente ia para a praia em Santos, era 40 minutos de Tapicirica da Serra, onde eu morava. Lá tem Poá, a Ilha de São Pedro, Praia das Gaivotas, muitos lugares gostosos, bons pra caramba. Aqui a gente não veio pra isso né, a gente veio mesmo para ajudar. Então só vamos para praia quando a gente pode, e não cobramos isso um do outro”, conta Cida, que quando está de folga gosta de ajudar na igreja, fazer piqueniques na lagoa perto do sítio onde mora, organizar a casa e, quando dá, ir para a Praia de Itamaracá.
“Quando pode vai, quando não pode não se é cobrado. Mas é legal que a gente sai com meu sogro e com a minha sogra porque eles nunca tiveram isso. Minha mãe foi muito feliz. A gente sempre saía com ela. Agora é a vez dos pais do meu marido serem felizes também. Você acredita que a primeira vez que eles foram à praia foi com a gente esse ano? Morando em Pernambuco a vida toda? Levamos eles pra Itamaracá. Mas não atravessamos não, porque minha sogra tinha medo. Ficamos no Forte Orange. Os pais dele são peças principais e é por eles que estamos aqui”, lembrou Cida, com uma invejável firmeza em seus propósitos.
A prova de amor
A lembrança do passado que Cida escolheu compartilhar comigo foi o dia em que, segundo ela, viu que seu marido a amava realmente. “Dois anos atrás eu não viria pra cá, ele viria sozinho. E um dia assim, conversando com minha mãe enquanto arrumava as coisas pra viajar, ele disse para ela que ia deixar pessoas que amava muito em São Paulo. Aí no dia seguinte falou para mim, falando sobre eu e meus filhos, ‘Eu preciso de vocês. Eu não vou conseguir ajudar meus pais sem vocês. Eu amo você e eu preciso de você. Vamo comigo? Eu prometo que eu volto.’ Aí eu vim”, disse sorrindo. Perguntei para Cida se ela agiu com o coração ou com a razão. Ela me disse que tinha sido com a razão, e me explicou o porquê. “A vida inteira a gente viveu com a minha mãe, ajudando a minha mãe. Por que eu iria fazer diferente quando os pais dele precisaram? Fazem 20 anos que a gente casou. Ele ficou com a minha mãe esse tempo todinho, festa, ano novo, ele nunca passou com a mãe dele. E na necessidade eu pensei, não estou indo para lá morar por morar e sim para ajudar, então porque eu seria indiferente com ele? Aí eu agi com a razão”, contou. “Agora eu sei o que é o amor. A gente não consegue mais ficar muito tempo sem se ver, sem se falar, eu tenho que vê-lo. É interessante, isso é amor. E é por isso que eu não acredito em amor à primeira vista. Primeiro você gosta e o amor vem crescendo no dia-a-dia. É compartilhar coisas boas e ruins, querer estar perto”, contou Cida, sendo bem didática comigo, que ouvi atentamente sua visão de amor como um conselho que ela, que viveu o dobro da minha vida, me oferecia. “Para mim é possível amar com razão. A gente vê as pessoas bonitas, bem arrumadas, cheirosas, mas a gente não sabe como elas estão por dentro. Minha mãe me ensinou que não adianta andar bem arrumado com uma roupa e um sapato bonito se por dentro você é podre. É preciso vestir a alma. Uma pessoa má é nudez pura. Tem que ser racional para ver isso”, ela disse, bem assertiva.
Aproveitei para perguntar como eles se conheceram, no passado. A cobradora fã de Janis Joplin, Raul Seixas e música gospel sorria enquanto narrava a história. “Foi muito legal conhecer ele, a gente era tudo jovem, né. Eu trabalhava na TAM fazendo a higienização com aerosol e ele trabalhava num colégio chamado Dante Alighieri. E eu trabalhava a noite, e ele largava a noite. Aí um dia o meu ônibus quebrou, o Campo Belo. Eu fiquei esperando outro num ponto lá na Paulista. E ele tava esperando o dele lá na Paulista também, então começou ali”, ela disse com uma riqueza de detalhes que me prendia a atenção. “Eu falei assim, ‘Caramba eu vou chegar atrasada’, e ele escutou. Foi muito engraçado. Aí ele disse ‘Então eu acho que eu posso te pagar um café’. Aí eu disse ‘Pô, café essa hora não rola’, aí passou meu ônibus e eu fui embora. A gente veio se encontrar de novo dias depois num barzinho, que se chamava Tô Chegando. Era minha folga e eu estava passeando, aí encontrei com ele lá por acaso pela segunda vez. Acho ótimo o nome do bar, Tô Chegando. Eu tinha 20 anos. Hoje tenho 44. Nossa história é muito legal porque não foi amor à primeira vista. Eu fui primeiro gostar. Gostar de ver, gostar da companhia agradável. Gostar de trocar ideia. A gente tinha muita ideia pra trocar, e isso me conquistou. Demorou muito pra ter alguma coisa, não foi nada forçado, tinha mais conversa. Ele ri muito”, complementou.
Entre o sol e a saudade, a rotina
Cida levanta da cama em Lagoa do Carro mais o menos 1h40 da manhã. Toma seu banho, toma café e vai para a BR esperar o ASA, que passa às 2h45. “O ASA é o ônibus que transporta a gente do interior. Venho dormindo nele até a garagem na Várzea, onde encontro o motorista e venho pra cá (Rio Doce). Depois minha rotina é isso aqui que você tá vendo”, ela contou. “Se houvesse empregos no interior, não seria necessário eu largar aqui de 14h e só chegar em casa de 17h30”, Cida lembra. Segundo ela, o assistencialismo ainda é muito forte no interior. “Os vereadores lá têm muito aquele negócio de festa, cesta básica, bebida de graça... mas o que a gente precisa mesmo no interior é de emprego. Para mim não é chato estar aqui, é que se tivesse emprego lá era mais cômodo", relata Cida. Recebo uma leve tapa na cara do meu privilégio nesse momento - a própria mobilidade é um privilégio. “Se eu pudesse chutar, diria que pelo menos 30% das pessoas que trabalham em ônibus vêm do interior (tentei confirmar com a Mobibrasil essa porcentagem de funcionários do interior, mas a assessoria só me informou que existe sim um grande número de pessoas oriundas das regiões citadas por Cida, porém sem nenhuma porcentagem ou quantidade exata). Tem gente que mora em Pombos, Aliança, Tracunhaém, Limoeiro... mas mesmo assim a gente vem pra Recife trabalhar com todo prazer porque necessita, né. Não acho ruim nem estrago meu dia por nada, nem pelo meu sono. E eu tenho um companheiro de trabalho muito legal, a gente se diverte muito”, disse Cida, com um otimismo acima do normal para às 6h30 da manhã.
Queria perguntar de onde vem essa felicidade, mas era preciso entender primeiro o que era felicidade para Cida. Ela explicou: “Para mim felicidade é ter uma família que te ame, te respeite. Felicidade é ter regras. Muitos dizem que regras são feitas para serem quebradas, mas é mentira isso, elas são feitas para serem cumpridas. Porque se você não segue aquilo, você não consegue ser feliz”, disse a mulher que se levanta cedo. “Felicidade também é amar e ter o coração limpo. Não olhar só o que as pessoas têm pra oferecer e mais pro que você tem pra dar. Isso me faz feliz”, completou.
Cida é os olhos do motorista e dos passageiros também. Sempre de olho onde as pessoas vão descer, de olho na porta para que o motorista não a feche rápido demais ou deixe-a aberta por muito tempo, e principalmente de olho no dinheiro que ela cuida. Cida abriu meus olhos para algo que eu não havia percebido: o cobrador e a cobradora são os tesoureiros da empresa. Uma peça principal naquele sistema – eles cuidam e carregam o dinheiro da empresa. “Devíamos ser mais valorizados e bem remunerados por causa disso”, ela disse, muito certa - afinal, o dinheiro que aquelas pessoas carregam deve ser protegido e bem guardado, mas quanto a vida de quem protege? Isso me lembrou uma das estratégias recomendadas pela Urbana-PE para evitar assaltos: Use o cartão VEM! (Vale Metropolitano que funciona como uma espécie de bilhete único em Pernambuco). Todo mundo sabe que isso não protege ninguém dos assaltos, cujos alvos são os telefones celulares – mas protege o dinheiro da empresa. Ainda que essa seja a minha opinião pessoal, Cida afirma que não tem o que reclamar da sua empresa, a Mobibrasil, onde trabalhava em São Paulo e conseguiu transferência para Recife.
Mas as coisas são um pouco diferentes entre os estados, por conta da diferença entre os sindicatos, que parece ser muito mais forte na capital paulista. “Ela (a Mobibrasil, antiga Metropolitana) é maravilhosa e de excelência. Em São Paulo ela é ainda melhor porque lá o sindicato trabalha pela gente. Trabalha mesmo, vê a necessidade da gente. Porque gente precisa, entende? Lá em São Paulo a gente tem cesta básica, tem convênio, eles deixam você à vontade. Eles mandam isso na sua casa, você tem todo conforto que a empresa dá. É uma cesta básica de cinco quilos, vem tudo que você imaginar. Quando temos uma necessidade, eles têm uma psicóloga lá que faz o maior trabalho em cima da gente, recolhe a gente na linha. Não vi isso aqui ainda. Seria muito útil pros motoristas, eles precisam demais. Em São Paulo nunca perdemos uma causa (o sindicato). Aqui perdemos todas. A lei tem que ser cumprida, então muitas vezes a nossa empresa sabe que nosso salário é baixo, nosso ticket é baixo, mas não pode aumentar porque esse salário tem que ser igual para todas as empresas rodoviárias. Então se a nossa aumenta, e outra empresa não gosta disso,eles vão recorrer em Brasília para baixar. E é o que acontece, eles ganham. Política, tá vendo? É muito grande nesse meio. Nosso patrão é ótimo e a Mobibrasil é a melhor empresa para se trabalhar. Ela só não paga mais porque infelizmente o patamar é esse. Se as outras tem uma base menor, ela tem que seguir essa base. Eles sabem que é baixo, que tem gente com necessidade, gente que é mãe e pai aqui dentro, mas não podem aumentar nosso salário mais do que as outras empresas querem. Mas veja só: se aqui a gente ganha 8% de aumento, lá em São Paulo é 15%. Até na Paraíba o sindicato ganha mais com greve. Mas é tempo de renovação aqui também. Vamos chegando lá”, completa. “Meus dois irmãos lá em São Paulo chegaram na Mobibrasil pequenininhos e foram estruturados, bem remunerados como motoristas. Ela dá condições de você subir na empresa”, conta Cida, que tem cinco irmãos motoristas de ônibus e uma irmã dona de casa em São Paulo. “Ser do lar é uma profissão muito boa e gostosa. Quando eu me aposentar, quero ser também”, disse, se referindo à irmã.
Tocava música evangélica no ônibus quando eu perguntei se Cida tinha religião. “Deus não deixou religião nenhuma”, ela falou. “A religião é do homem e Deus só nos disse para amarmos uns aos outros como vos amei. A igreja somos eu e você, ele deixou um tabernáculo mas a religião é do homem. Ele que doutrina, mas Deus não deixou doutrina, ele deixou o coração. Mas eu acho que você tem que agir com a razão e não com a razão. Sem a razão você perde. Porque o coração é completamente corrupto. É preciso agir com a razão pura, com o coração você anda pra trás e com a razão você anda pra frente”. Depois, ao longo da conversa, ela me contou que ajudava na Igreja Universal. Mas a primeira resposta sobre sua fé já havia sido completa o suficiente.
As pessoas que Cida vê
Cida tem uma relação de cortesia com as pessoas que vê. “Aqui a gente é psicóloga, mãe, irmã. Já peguei jovem aqui sofrendo muito, menina novinha grávida chorando sem saber o que fazer. Acho que se fosse pra ter outra profissão, seria algo que eu pudesse ouvir e ajudar as pessoas. Se eu tivesse dinheiro pra ajudar todo mundo eu ia de verdade dar, acho que é por isso que deus não me deu dinheiro”, analisou a paulista. Mas nem sempre a relação com os passageiros é recíproca. “O cobrador não tem culpa pelos problemas que as pessoas têm em casa. Elas misturam muito, né? A culpa não é nossa que o ônibus tá cheio, que a passagem tá cara. Elas já sobem no ônibus com raiva, não sei por que. Eu mudaria isso nas pessoas se pudesse, daria mais educação. Mas faço minha parte tentando aliviar a parte deles, dando bom dia, dando olá, fazendo meu trabalho legal para não estressar ninguém”. Cida é realmente muito bem humorada para quem acorda tão cedo. Isso é o máximo.
“Todo mundo tem problema em casa. Só que algumas pessoas conversam com a gente sobre esses problemas e outras descontam eles na gente. A gente aguenta muita coisa porque o pessoal não sabe separar a vida fora de casa com a vida privada. Descontam não só no cobrador mas no motorista também. Mas quando elas conversam sobre os problemas com a gente eu com certeza empresto meu coração e meu calor humano. Eu escuto e, se puder aconselhar, eu aconselho. Se eu puder ajudar com dinheiro eu ajudo e assim vai indo. Quando dá pra ajudar a gente ajuda, sim. Muitas vezes chega alguém sem o dinheiro da passagem e quando eu sei que posso ajudar, eu peço pro motorista abrir a porta do meio pra pessoa subir. Tem uma senhora que vem aqui todo dia com o filho dela e eles têm um cartão VEM só. Ela é sozinha. A gente já conhece ela e ela já chorou muito com a gente porque estava numa situação difícil sem poder pagar a passagem e desde que eu a vi, ela entra com o filho dela, paga a passagem dele com o VEM, desce, e espera pra ir em outro ônibus. Eu nunca entrei em detalhes sobre a história dela, mas sei que são momentos difíceis. Não é permitido não a gente fazer isso, mas às vezes temos que agir com o coração, senão a gente não consegue viver. Tem adulto passando com cartão infantil, tem vezes que é sacanagem e a gente olha e faz vista grossa, mas às vezes é necessidade mesmo. Aí a gente não faz confusão pra não estragar o dia”, contou. Cida também tem amigos na linha que a abraçam, beijam, e, segundo ela, a tratam como família. “O bom é que são raros os que chegam na linha pra brigar, mas amizade tem bastante”, contou.
Entre as histórias que Cida coleciona, algumas marcaram mais. Uma senhora entrou pela frente pedindo ao motorista que a deixasse entrar para pedir ajuda. As pessoas naquele dia maltrataram ela. “Foi uma situação difícil, não sei explicar. Eu ainda era nova aqui e não sei dizer por que, mas provavelmente ela pedia muito e já a conheciam de outras viagens ou sabiam que ela mentia sobre sua situação”, disse Cida. “Então ela chorou aqui comigo na catraca, Aí eu aconselhei ela a comprar alguma coisa pra vender no ônibus, como outros trabalhadores fazem. Hoje em dia ela tá lá na Avenida Caxangá, vendendo água. Quando me vê, fala comigo, “ei, cobradora!”. Já a vi vendendo jujuba também, dentro dos ônibus, e ela já me deu jujuba e água. Eu dou risada quando vejo ela, fico feliz”, ela ia me contando orgulhosa. “Eu acho que pedir todo dia deve ser muito chato para a pessoa, porque os passageiros não gostam. Até ajudam, mas não gostam. Depois que essas pessoas pedindo saem, os passageiros comentam com o motorista perguntando se o ônibus virou igreja”.
Ela também me contou, triste, a história de uma senhorinha que foi deixada pela filha no ônibus “como se fosse um nada”, segundo Cida. A filha desceu e disse para a mãe não esquecer de descer. “É injusto isso com ela. Teve um dia que a velhinha fez o trajeto do ônibus todo, foi e voltou comigo, porque a filha sequer me falou onde a senhora ia descer”, desabafou. O tom de Cida era um misto de pena e tristeza. No outro dia, a velhinha fora colocada de novo no ônibus, pela filha. Dessa vez, Cida interveio: perguntou onde ela iria descer e falou para a filha que ela foi e voltou no dia anterior. A filha só fez ‘ah, ela vai descer no mercado da Madalena’. Toda vez agora eu puxo pra ela descer lá, agora o que ela vai fazer eu não sei. Ela deve ter seus 80 anos, ela é muito idosa mesmo, judiada. Tenho que ajudar até a descer. Mas é assim, as pessoas não tem amor. Se ela gostasse mesmo da mãe, essa mulher dava um jeito de ir com ela, mandava alguém ir. Não tem lógica entregar um idoso assim, uma pessoa bem velhinha, nas mãos de alguém que você nem conhece”, lamentou Cida.
O motorista amigo
“Ele tinha um coração duro porque ele foi muito maltratado”, contou Cida sobre Ricardo, o motorista que trabalha com ela. “Tudo que eu falava ele respondia brigando comigo, berrava achando que eu queria mandar no ônibus. E eu dizia pra ele, ‘amigo, se você agir com suas emoções você vai magoar muita gente. Tem que usar isso aqui (apontando pra cabeça). ’ Hoje em dia a gente está em paz. Eu ensinei a ele como viver, porque do jeito que ele ia vivendo ele ia morrer de tanto estresse. Uma vez fiquei horrorizada com uma briga que ele teve com outro cara no trânsito, parecia que ia descer pela janela e bater nele. Aí eu apresentei Deus pra ele. ‘Tu conhece deus? Posso apresentar ele pra você?’ Oxe, aí ele mudou completamente agora, é outro Ricardo. Todo mundo fala. ‘O que você fez com ele, paulista?’, e eu digo que nada. Só apresentei para ele o que Deus me deu de graça: a razão. Por que você vive? Por que você está aqui? Para maltratar os outros? Não, você está aqui pra ser feliz”, lembrou Cida, que foi madrinha do casamento de Ricardo. “Em menos de seis meses a gente se tornou amigo mesmo. Tipo família, que liga para saber como a pessoa tá, onde ela chegou e dá carona quando pode”. Ela lembrou que se arrumou bastante para o evento e estava tão diferente que ele nem a reconheceu. “Ricardo falou ‘Cida, é tu?’ e eu disse ‘Euzinha!’”, riu. Perguntei se ela era vaidosa fora do expediente. “Ah, você não me conhece. Acho que não ia me reconhecer também. Gosto de colocar maquiagem, fazer cabelo, usar salto alto”, me contou a cobradora, cuja beleza aparecia mesmo quando ela tentava a esconder no dia-a-dia do trabalho.
O ônibus enchia a cada minuto de conversa, e Cida continuava serena, trocando o dinheiro e dividindo as atenções entre eu, os passageiros, o dinheiro, a porta, a música. “A senhora vai descer logo? Não? Posso te dar o troco depois, por favor? Obrigada!” Perguntei se em meio a tantas pessoas ela já sofreu assédio por parte de passageiros. A resposta não foi diferente do que eu imaginei: “Assédio a gente sofre todo dia, né? Seja de um companheiro de trabalho ou de um usuário do coletivo. Eu já não uso maquiagem por causa disso. Porque a gente é assediada aqui. Muitos acham que cobradora é puta só porque muitas vezes estamos aqui sorrindo, brincando. Mas a gente tem que ser simpática porque se eu quero ser tratada bem, eu tenho que tratar bem, não é verdade? Aí tem uns que pensam que a gente está dando bola, deixam até telefone. Uma vez deixaram um bombom aqui junto com um papel, que tinha escrito o número do telefone do cara. Liguei não, comi o bombom e joguei o papel fora”, revelou e riu, apesar dos pesares. “Tem gente que espera você no terminal, esperando seu ônibus só pra sair no mesmo que você. Dia de sábado tem um rapaz que eu vejo que faz questão de ficar aqui na catraca dia de sábado, conversando, falando que eu sou linda, que meu sorriso é lindo. Aí eu até acho engraçado né, nossa vida é assim mesmo”. Nossa vida é assim mesmo. Nossa vida é assim, mesmo.
“Fecha lá trás. Olha lá, mais um trabalhador vendendo água por aqui. Essa é nossa vida. Gostou da vida de um cobrador? Não é chata. Quem faz o ambiente somos nós. E você teve sorte de não encontrar ninguém de mau humor”, finalizamos nossa conversa num trecho da Caxangá e assim Cida se despedia de mim. Não passava muito das sete da manhã, mas eu já ganhara o dia.