“Eu falo, bem”, me disse Solange Ferreira da Silva, quando cheguei no Terminal da Várzea numa quinta-feira quente de agosto procurando uma cobradora que topasse dividir sua história comigo para este trabalho. Ela estava lanchando e já ia entrar no ônibus para seguir viagem, então me passou rapidamente seu número para que entrássemos em contato durante a semana. Depois eu iria descobrir que ela chama todos ao redor de “bem” carinhosamente, e assim é conhecida por alguns colegas no terminal - "bem". Quando cheguei para a entrevista, o ônibus estava atrasado pois o motorista ainda não havia chegado. Solange estranhou, afinal ele mora na Várzea, muito mais perto do terminal que ela, que mora em um loteamento há um pouco mais de 3 KM do centro de Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana de Recife.
Para chegar ao trabalho, onde pega às 14h45, Solange sai de casa às 13h. Pega um ônibus até o metrô e do metrô pega um ônibus para a Várzea. “Para voltar que é difícil. Tenho que ir até o Terminal da Macaxeira de ônibus, de lá pego outro ônibus para o Terminal do Barro e do Barro, quando dá tempo, pego o metrô para casa - quando não dá, pego outro ônibus. É mais difícil”, explicou o caminho. O trânsito faz parte de sua rotina, afinal, Solange faz a linha Dois Irmãos/Rui Barbosa, que passa pelos trechos mais engarrafados da Zona Norte do Recife. “Quando chega na Rua da hora, Rosa e Silva, Avenida Rui Barbosa ou 17 de Agosto… é pesado quando o trajeto de duas horas ou duas horas e meia vira três ou quatro horas por conta do trânsito. O trecho de Apipucos para Dois Irmãos também pega um trânsitozinho”, conta.
Apesar disso, Solange gosta muito de ser cobradora. “É bom porque trabalho praticamente sozinha, não tem exatamente um patrão em cima de mim, sei o que é certo e o que é errado e sei meus limites. A parte ruim são as horas que você sente fome ou sede e não dá pra comer ou beber água, nem ir ao banheiro. Mas dá pra levar no dia a dia. Eu gosto de trabalhar de cobradora pensando positivo também. Tô há dez anos aqui e nunca fui assaltada, graças a Deus, porque eu trabalho com pensamento positivo. Também gosto porque às vezes estou muito cansada, pois dona de casa trabalha muito, aí quando eu chego no ônibus e sento aqui é uma forma de descansar. Em casa eu sou escrava e aqui eu me sento e descanso, passo o troco, tranquilo demais”, ela disse, e depois dessa última frase indaguei se não havia ninguém para ajudá-la em casa. “Meu filho mais velho e a caçula não moram comigo, e o outro trabalha muito. Aí meu marido só ajuda com o que pode, quando tá em casa e tem tempo”, explicou.
(Des)Familiaridades
Solange tem 47 anos é mãe de três: seu filho mais velho, Jailson, tem 24 anos e trabalha no setor administrativo de uma faculdade particular. Trancou o curso de Sistema da Informação porque era um gasto a mais no orçamento de recém-casado, mas pretende voltar em janeiro. Marcos, o do meio, tem 20 e quer fazer faculdade, mas por enquanto está trabalhando em telemarketing. A caçula, Mariane, tem 19 e é menor aprendiz. A cobradora está no segundo casamento há sete anos. O primeiro acabou há dez, e dele Solange leva apenas o terreno onde vive, Mariane e Marcos. “Eu convivi quase dez anos com esse outro homem, pai dos meus filhos. Era aquela coisa… quando ele bebia, ele se transformava. Se transformava de um jeito que quando bebia, o semblante mudava. E ele bebia muito. Entre várias idas e voltas a gente se separou, mas só tínhamos uma casa. Aí ele construiu outra que faltava piso, faltava energia, faltava tudo, só tinha porta, mas eu não quis saber não, dei um jeito de fazer um piso provisório e fui embora. Passei um ano desempregada depois que me separei, aliás, foram dois anos, dependendo de pensão. Água era uma dificuldade, tinha que carregar do poço lá em Jaboatão”, conta a cobradora.
“Passei por muita dificuldade mas graças a Deus hoje minha casa está prontinha, rebocada, tudo direitinho. Meus filhos cresceram, um deles já tá casado, eu tô trabalhando, entendesse? Hoje eu tô tranquila”, e realmente estava. Apesar da história difícil, Solange não parecia carregar nenhum pesar ao narrá-la. E se, quando narramos nossa vida, damos sentido à ela, o sentido que Solange dá à sua é de que tudo é passageiro. “Dificuldade todo mundo passa. Na vista do que já passei, tô tranquila. Meu marido atual é vigilante e trabalha também, sei que se alguma coisa der errado aqui na empresa e eu ficar desempregada não vou ficar desamparada. Mas estou aqui há 10 anos e tudo certo”, ela contava enquanto organizava as células de dez reais. Apesar disso, o ex-marido de Solange não parece estar satisfeito com os rumos da separação. Mesmo ela ficando com a casa mais longe, enquanto ele se manteve com o duplex completo no centro de Jaboatão e o carro, sua vontade era que Solange de fato não levasse nada do antigo casamento. “Ele não queria me dar as coisas que eu tinha direito. Tanto é que o terreno onde moro está no nome dos meus filhos com ele, que hoje são maiores de idade”, confessou. “Ainda hoje ele me pertuba com esse assunto. E sinceramente é a única coisa que me tira do sério”, disse.
O problema começou quando o filho mais velho de Solange casou e ela ofereceu uma parte desse terreno para que ele construísse sua casa com a esposa. O filho mais velho de Solange não é de seu ex-marido, o que lhe irritou. “Ele diz que eu não tinha o direito de entregar um pedaço do terreno pro meu filho sem autorização”, contou Solange. “Quando tive meu primeiro filho, Jailson, eu não casei, dei um passo errado na vida - mas ele não tem nada a ver com isso. Eu chamo ele de tesouro, porque ele é meu orgulho, nunca me deu trabalho nenhum. Namorou, noivou e casou na igreja, tudo certinho. Tem o trabalho dele, vai voltar para a faculdade, a esposa dele trabalha e faz faculdade também. Não me dá nenhum problema. Mas o pai das outras minhas duas criaturinhas… Ele não esquece esse assunto. Pelou muito meu juízo. O terreno é tão grande que além da casa do meu filho tem uma parte dele que eu vendi, mas ele fica dizendo que eu não tenho nada lá não, quem tem é Mariane e Marcos. Só que como pode isso, sendo que eu vivi praticamente dez anos com ele e nunca tive direito a nada? Ele botou no nome dos meninos para tentar tirar ainda mais isso de mim, mas perante a lei, até quem vive seis meses casado com outro tem direito à alguma coisa quando separa, quem dirá quem conviveu dez anos? Porque ele faz tanta questão se ele ficou com a melhor parte: a casa central duplex, o carro. Eu fui para uma casa que nem reboco e piso tinha, longe de tudo, e ele ataca meu juízo porque moro lá com meu marido e meu filho. Ele diz que vai para a justiça tirar a gente de lá, ele quer me desestabilizar. Queria que ele entendesse que a casa é minha. Eu falo desse jeito mas sei que dessa vida a gente não leva nada, bem. Mas só dele querer tirar ainda mais esse direito de mim eu saio do sério”, desabafou Solange, ciente de que uma casa não é só uma casa.
“Quantas vezes ele já não me viu sentada no canto do quarto, me sentindo do tamanho de uma bolinha, chorando. Olhava para trás, me via com três filhos e pensava: eu vou para onde? Tinha que aguentar ele bebendo sempre daquele jeito, aguentei muitos anos até tomar a decisão de sair dali. Não queria morar na casa da minha mãe ou de outros parentes porque não ia ser uma boa experiência com três filhos. Aí aguentei muito tempo. A gente se separou no ano da festa de formatura do ABC da minha filha, que tinha sete anos. Ele tinha que dançar a valsa com ela e não foi. Quem foi foi meu cunhado. Durante esses doze anos separada dele, ele não casou nem arrumou ninguém para morar com ele. Porque ele é ranzinza e faz questão de tudo. Ele não deixava eu ajudar ninguém da minha família. Minha irmã já passou por dificuldades e, para ajudá-la, sabe o que eu fazia? Colocava bifes que ficavam dentro do congelador sobrando por semanas dentro de uma sacolinha e passava para a casa da vizinha, para que ela entregasse à minha irmã. A gente não leva nada daqui não, bem”.
Na sua casa, Solange mora hoje com o marido e seu filho do meio. “O mais velho é casado e a mais nova prefere ficar com o pai, está lá há uns 2 meses. As vezes passa um tempo comigo, se chateia, fica com o pai, passa seis meses e volta. É que lá em casa, para ela sair, tem que pegar ônibus para tudo. Já na casa do pai, que é no centro de Jaboatão, é melhor porque é mais perto das coisas. Para a escola dela, de lá ela não pega ônibus, para ela é tudo mais fácil lá do que na minha casa. Eu moro num loteamento bom em Jaboatão, mas é muito novo, falta muita coisa ainda. A maioria das coisas que precisamos comprar, por exemplo, temos que pegar ônibus para o centro. Realmente não tem muito movimento lá, e isso dá um tédio na minha filha que acaba ficando dentro de casa. Se ela não tiver internet dentro de casa desanda tudo. Tem que ter internet. Aí ela prefere lá. Mas eu acho bom que ela fique na casa do pai porque eu trabalho o dia todo. Ela é mulher, ficar lá sozinha… Não é bom. E o pai dela não casou mais, também fica só porque trabalha de casa, aí os dois lá é bom que um cuida do outro. Confesso que fico menos preocupada quando ela está lá”, desabafou Solange.
O certificado
Solange tem muito do que se orgulhar na Transcol, empresa que opera o Dois Irmãos/Rui Barbosa. Ao longo de sua trajetória, conquistou um certificado de excelência da empresa. “Foi assim. Um casal de pessoas com deficiência, os dois cadeirantes, pediu para subir no ônibus. A gente tem autorização de carregar só um cadeirante dentro do ônibus, só tem espaço ali para um e do lado tem uma cadeirinha para o acompanhante. Então o motorista disse, “eita bem, e agora?”, e eu disse “para aí para eles subirem. Tem que dar, eles estão juntos, não podemos levar um e deixar o outro”. Aí ele parou e nós dois descemos e ajudamos eles a subir. Colocamos eles ali dentro, demos um jeito com o cinto e deu certo. O que a gente não sabia era que eles trabalhavam no Consórcio Grande Recife (consórcio do Governo de Pernambuco responsável pelo transporte coletivo da região metropolitana do Recife). Eles se sentiram muito lisonjeados porque os tratamos muito bem e demos um jeito de levá-los. Aí umas duas semanas depois o chefe da empresa mandou me chamar. Eu fiquei logo com medo, pensei que coisa boa não podia ser. No outro dia, quando cheguei lá, estava me esperando um certificado que guardo até hoje, de excelência. A Grande Recife mandou uma carta para a empresa falando de mim e do motorista, falando desse dia. Achei muito bom”, lembra.
Nessa conversa, pergunto se Solange já participou do sindicato. A resposta revelou o que eu já tinha observado em outras conversas com as participantes desse trabalho: "Eu participo do sindicato financeiramente mas nunca usei nada do sindicato. Ele deixa muito a desejar. Há dez anos que eu pago o sindicato e da única vez que precisei de uma informação jurídica eles me negaram, alegando que era para uma causa pessoal e não trabalhista. Só que eu queria apenas uma informação sobre como proceder. Uma vez encontrei uma equipe do sindicato no Barro e eles disseram que têm clínicas em casa amarela, médicos. Dizem que tem clube com piscina e tudo, área de lazer. Eu nunca participei. Hoje eu ainda pago e nem sei porque, nem carteirinha eu tenho. Quando eu entrei na empresa ela automaticamente me associou ao sindicato, nem sei porque continuo, mas é porque é a maior burocracia para cancelar. E tudo é tempo que a gente perde. Tem que ir na Cruz Cabugá, pegar dois papéis, preencher, levar para a empresa… Não sei. Sei que já fui punida por ter participado de greve. Me colocaram seis meses em sistema de reserva, que funciona em você substituir pessoas todos os dias em uma linha e um horário diferente até voltar para um horário fixo meses depois. Era muito ruim. Isso tudo porque participei de uma greve. Cadê o sindicato nessas horas que precisei? Mas as pessoas que fizeram isso hoje não estão na empresa. Esse tipo de punição varia de chefia para chefia, e ainda bem que as coisas mudam. Hoje eu não trabalho na greve e não sou punida por isso, pois é absurdo", conta Solange, aliviada.
Transparente
“Vou te contar um segredo”, me disse Solange, logo após reclamar que não tinha cédulas de dois suficientes naquele dia para facilitar os trocos. “Eu não sei se é impressão minha, mas eu tirei a conclusão de que a maioria dos pernambucanos faltou a aula de bons modos e educação, sinceramente. Porque essa é uma linha de universitários, tem passageiro que sobe aqui com um livro grosso na mão, de paletó e gravata, e eu fico aqui transparente, porque ele não consegue me cumprimentar. De que está servindo esse estudo todo se ele não tem capacidade de dar um boa noite, um boa tarde, um bom dia? tem horas que isso me incomoda tanto, sabia?”, desabafou a cobradora, enquanto por dentro eu morria de vergonha dos colegas universitários. “Agora quer ver eles me acharem? Se eles se perderem, não souberem onde estão ou onde vão descer, ou se pegarem o ônibus errado. Aí lembram: a cobradora! Aí vêm, mas antes nem percebem que já haviam passado por mim. Muitas vezes nem um boa tarde dão e já perguntam onde desce em tal lugar”, observou.
“Às vezes eu acho que sou transparente mesmo. Eu fico besta como esse ônibus lota e ninguém me vê, aí eu fico assim observando, quando de repente em meio àquele povo todo sobe UM e dá boa noite. Teve uma vez que eu comentei com um desses: ‘está vendo esse povo todo aí no ônibus? não está cheio? tu acredita que só tu que está passando aqui me deu boa noite?’, ele se sentiu lisonjeado quando eu disse isso. E não foi só uma vez não isso, foram várias. ‘Boa noite’, ‘poxa, até que enfim apareceu um que deu boa noite’. Eu fico meio assim porque é uma linha nobre, de universitários. Eu não entendo isso, eles estudaram tanto pra chegar nas universidades e o básico não dizem”, disse Solange, coberta de razão. “Às vezes, criança bem pequena me cumprimenta, essas que mal sabem falar. Eu ganho meu dia, bem. Se eu pudesse gravar esse momento eu registrava, pra mostrar aos universitários e eles passarem vergonha”, confessou. “A linha que eu mais gostei de fazer foi Casa Amarela (Cruz Cabugá). É uma linha tranquila, pouca demanda, era ótimo. Infelizmente fiquei só um ano rodando nela. até hoje me pergunto porque me tiraram de lá. O chefe disse que foi pra fazer um experimento, nem sei que experimento foi esse, só sei que pedi para voltar e ele disse que ia ver, mas aí ele saiu da empresa e acabei ficando aqui no Rui Barbosa mesmo, há dois anos já”, conta Solange. De acordo com a cobradora, linhas menores são mais fáceis de fazer amizade - aquelas que duram, como ela mesma disse. “Aqui no Rui Barbosa, como é uma linha maior, as amizades são passageiras, às vezes as pessoas falam comigo e eu nem me lembro. Linhas longas a gente enche o ônibus, esvazia e espera chegar no ponto de retorno”, narrou.
"Bem"
"Eu chamo todo mundo de bem", disse Solange. "No terminal me conhecem assim, porque eu faço de tudo para tratar os outros de forma educada, acho uma forma carinhosa de tratar as pessoas. As vezes eu não sei o nome de alguém então chamo de bem. Mas aí alguns homens confundem isso. Levam pro outro lado. Pelo simples fato de chamar o motorista de bem algumas pessoas acham que eu sou casada com ele também. Acho que isso não tem nada a ver", conta a cobradora.
Solange é muito preocupada com cada passageiro. Fica aflita com a possibilidade de eles descerem sem pegar o troco, por exemplo. Mencionou diversas vezes durante a entrevista que uma menina que subiu no ônibus na UFPE ainda não havia ido buscar o troco já em Casa Forte, e não conseguia identificá-la exatamente no ônibus para poder lembrá-la. "Eu trabalhava com um motorista que era altamente ignorante na linha Macaxeira/Parnamirim. Um dia, um rapaz começou a passar mal durante o trajeto, ele ficou pálido e suou de um jeito que a roupa colava no corpo, parecia que deram banho nele. O rapaz se contorcia, passando mal, como se tivesse sentindo muita dor, foi tão estranho. Quando chegamos na praça de Parnamirim, o pessoal estava em pânico, sem saber o que fazer. Aí eu falei para o motorista 'Ei, tem um rapaz passando muito mal aqui no ônibus, o que podemos fazer?', porque eu já estava em pânico também. Sabe o que o motorista me respondeu? 'Tem um ponto de táxi ali'. Eu fiquei passada com essa resposta que ele me deu, visse? Quando ele parou na Parnamirim os passageiros desceram o rapaz, pelo menos. Só que o que eu acho interessante nessa história é que hoje esse motorista é uma seda. Com o passar do dia a dia eu fui lapidando ele, entende? Não dava para trabalhar com alguém daquele jeito. Ele brigava comigo, me fazia passar vergonha na frente de passageiro. Uma vez o passageiro pediu pra eu puxar a cordinha para solicitar a parada e ele brigou comigo, dizendo pra eu não fazer isso. Olhe, eu chorei nesse dia, ele falou comigo de um jeito horrível na frente dos outros. E hoje é um dos melhores relacionamentos que eu tenho na empresa. Não fazemos mais a mesma linha juntos, mas hoje ele fala quando me vê: 'olha bem, quando sobem os velhinhos no ônibus eu lembro de tu, paro bem devagar'. É que eu vejo os idosos que sobem aqui como crianças. Indefesos, entendeu? E eu mostrei isso pra ele e ele aprendeu a tratá-los bem. Não é mais uma pessoa ignorante. Agora ele também me chama de “bem”", conta.
Solange diz gostar de deitar a cabeça no travesseiro em paz. Quando pergunto o que a faz feliz, ela revela que ficar tranquila e sem preocupações de dever a alguém ou ter feito alguma coisa errada é uma das coisas que a traz felicidade. "Estar perto da pessoa que eu amo também. É muito bom gostar de alguém e dividir momentos com essa pessoa. Outra coisa: minha família. Ela é responsável pela minha felicidade. Meus filhos são minha estrutura, sem eles não sou nada. Gosto demais do meu marido, mas marido pode ser ex e filho nunca vai ser. Estando eu e meus filhos bem e com saúde, estou feliz. Felicidade é isso, não dar um passo maior do que minhas pernas", afirmou a cobradora. "Se eu tenho x eu só gasto x. Não aguento deitar e acordar preocupada com pagamento ou por não ter dinheiro. Por isso que não tenho cartão de crédito. Já tive essa experiência e é um buraco sem fim. Tem hora que é bom, mas tem hora que é só a misericórdia", disse a cobradora.
A cidade por Solange
Minha parte preferida do trajeto é o Recife Antigo. É a parte mais linda da cidade, e quando chegamos lá o ônibus já está quase vazio aí posso ficar só olhando e curtindo a maresia ali do Teatro Santa Isabel em diante. Adoro quando passo na ponte que dá acesso ao Marco Zero. É a melhor vista que eu tenho do Recife. Minha filha adora ficar ali no Recife Antigo, é bom pros jovens, é um lugar que eles gostam de se encontrar. Tinha até um passageiro me contando que tem gente de todo tipo, é uma área de lésbicas, frangos como eles dizem né, os gays, mas que lá não existe preconceito, eles conversam livremente um com o outro independente do que sejam, entendeu? Conversam num nível só. É uma área muito boa e arejada também, muito bonita. O Recife tinha que ter mais espaços para lazer entende? Porque nem toda hora você tem dinheiro. Por exemplo aqui em Dois Irmãos tem o horto, mas para um pai de família com vários filhos trazer eles no fim de semana já é um alto gasto de dinheiro. Tem lanche, tem entrada… Aquele Parque da jaqueira mesmo é muito bom, por exemplo, é um dos melhores parques que tem aqui. Mas eu nunca entrei, só vejo de fora, dá pra ver que tem tudo, até academia! Quando rodava no Macaxeira/Parnamirim, que dá pra ver bem por dentro do parque, já vi gente que faz festinha de aniversário ali e tudo. Tudo enfeitado de bola, muito bonito. É um espaço bom. A criança tem espaço pra correr e brincar e você ainda leva um lanche de casa, faz um piquinique. Criança tem que ter espaço pra correr e esses espaços a gente não vê", conta. O Parque da Jaqueira fica à 24 km de Jaboatão, onde Solange nasceu e mora até hoje. De quebra, não existe um ônibus que ligue a Zona Norte à Zona Sul do Recife. Não é de se admirar que ela conheça o parque apenas da janela do ônibus que trabalha.
"A ponte de Princesa Isabel e todo o centro do Recife com os rios é o melhor que tem para se ver aqui. No mais, acho que não tem muita coisa não. Quando me perguntam aqui no ônibus um lugar bom para ir, eu falo que sinceramente não sei dizer direito. Tem o Museu do Estado, na Rui Barbosa, e o Museu do Homem do Nordeste, que hoje tem cinema, né? Eu tenho curiosidade de ver aquele cinema", relatou Solange. Conto que já estagiei na Fundação Joaquim Nabuco, onde fica o museu e o cinema. “É legal lá? eu adoro cinema”, ela revelou. Contei que têm muitos filmes diferentes lá e do jardim bonito na frente, e que ela devia conhecer. “Deve ser legal, muita gente me pede informação sobre ele”. Assim como o Parque da Jaqueira, o Cinema do Museu é inacessível para a maioria da população da Zona Sul do Recife: localizado no final da Avenida Dezessete de Agosto, em Casa Forte, é necessário mais de um ônibus para chegar lá. Para Solange, é melhor ir ao Shopping Guararapes, que fica mais próximo da sua casa. "Quando eu tô com um dinheirinho eu gosto de sair com minha filha. De ir ao shopping com ela, comer no Mc Donald’s e ir ao cinema. Adoro ir ao shopping. No meu aniversário fomos ao Shopping Guararapes, meus filhos e minha nora, foi muito bom o momento. Comemos no Mc e vimos um filme em seguida. Também gosto muito de praia. Conheci muitas como Calhetas, Gaibú, Porto de Galinhas. Já quando tô sem dinheiro gosto de ficar em casa e tomar uma cervejinha ouvindo música com o meu marido, é bom ficar sozinha com ele, namorar, a gente bebe, faz um tira-gosto diferente e se diverte muito", conta. "Domingo é o dia mais estressante para trabalhar. Porque tá todo mundo em casa e eu quero ficar com a família e não posso. O sistema não permite. Agora mesmo estou apelando para conseguir uma folga amanhã, para dar uma voadinha. É feriado, e folga é folga", contou, rindo, a cobradora. Era interessante demais ver como seu semblante mudava ao falar dos momentos de lazer com a família: os sorrisos duplicavam. Lembro de quando ela me falou que tinha que buscar água no poço, quando sua casa não tinha piso, os dois anos desempregada. Solange esteve fora do mercado de trabalho por 11 anos por conta dos filhos, que por serem três, não tinha com quem deixar. Compartilhar momentos de consumo e lazer com esses mesmos filhos para alguém que viveu tudo isso deve ter um significado ainda mais especial. É a legitimação de que agora ela pode dar a eles um presente mais brando que o passado - e que esse presente dará frutos de um futuro melhor.