Uma mulher negra de cabelos pretos e presos estava encostada num muro, sentada. Ao seu lado, um colega motorista com quem conversava. Ela estava fardada como cobradora e havia tirado os sapatos - estava descansando. Eu não tinha reparado a princípio que era uma mulher, pois estava sem óculos. De longe, a farda e os cabelos para trás enganaram minha visão. Foi a amiga que me acompanhava na missão de encontrar cobradoras para este projeto no terminal de Setúbal que apontou discretamente e disse “olha, tem uma cobradora ali”. Essa cobradora era Paula Silva, de 37 anos. Ela foi a primeira mulher desta série que entrei em contato.
Nos aproximamos do muro e sentamos. Pedi licença e expliquei o projeto, no que ela se interessou em falar. “Tenho muito o que falar. Queria até escrever um livro”. Minhas expectativas ficaram altas, e a conversa seguiu. Nesse dia eu descobri que Paula mora longe, em São Lourenço. Ela disse também que não considera dignas algumas condições de trabalho para rodoviários. “Alguns colegas precisam dormir na garagem quando largam muito tarde e moram longe”, contou. O intervalo acabou e a gente trocou telefones, mas Paula disse que ela ligaria quando pudéssemos conversar melhor. Tudo ok por fora, mas por dentro eu tinha medo que ela desistisse – afinal, como disse, minhas expectativas estavam altas. Passaram-se 20 dias e Paula e eu finalmente marcamos o dia da entrevista. Eu estava aliviada! Já tinha entrevistado outras mulheres, mas ela tinha sido a primeira que eu encontrei. Não queria perde-la. Cheguei no Terminal de Setúbal de novo naquele dia, às 15h, e a esperei para seguirmos viagem no ônibus da linha Setúbal/Conde da Boa Vista, onde ela trabalha.
Humanos e máquinas
Paula não sentia muita vontade de falar da vida pessoal, e sim do trabalho. Deixei que assim fosse a conversa. A cobradora, séria, não sorriu para as fotografias que tirei. A partir daí, sabia que ela era uma pessoa mais reservada que as outras mulheres que conversei – e isso não era um problema, era um traço interessante da sua individualidade. A conversa começou a fluir quando retornei ao assunto que falamos no dia em que nos conhecemos: as condições de trabalho dos rodoviários. “Apesar de não existir uma mão de obra pesada, é um trabalho muito cansativo. É um trabalho que tem risco, principalmente linha de praia e dia de jogo. Esses horários também não são bons para ninguém”, Paula foi se abrindo.
“Claro que tem partes boas e ruins. A parte boa é essa, de não ter mão de obra pesada como quem faz faxina e coisas assim. Mas a parte ruim são esses horários. Porque a maioria aqui não tem horário fixo. Não tem como eu fazer um curso ou um bico para aumentar a renda. Porque um dia você pega de onze, outro de três, outro de quatro. Temos a escala da semana, mas não dá para saber sempre que horas vamos pegar e largar. Eu queria estudar, mas esse horário não ajuda. A não ser que eu trabalhe de manhã e vá de noite, mas seria tão cansativo. Na verdade depende da pessoa, né. Se você tem força de vontade você consegue uma saída. Eu podia ir para a manhã. Mas as coisas só vêm com muita luta. É difícil para quem estuda e trabalha conciliar tantas coisas e ainda mais a sua vida pessoal”, contou. Paula mora em São Lourenço, na parte de granja. Leva duas horas e meia para chegar no terminal de Setúbal. Pega mototáxi, metrô e ônibus. Imagino se ela tivesse que trabalhar pela manhã, onde geralmente os turnos começam antes das 06h, e de noite ainda estudar, pois os turnos de universidades e cursos à noite costumam ir até às 22h. Quantas horas de sono ela teria? Discordo que seja força de vontade que a atrapalha. São condições muito adversas. Ninguém deveria ser obrigado a abrir mão da sua qualidade de vida neste nível para conquistar coisas que, para uma parcela privilegiada da sociedade, são “básicas”, como o estudo ou o ensino superior.
“Se eu pudesse mesmo faria um curso na área imobiliária. Para ser corretora de imóveis. Já pesquisei em algumas faculdades que oferecem o curso mas é muito caro esse. Para eu pagar com meu salário... não dava nem para pagar nem a metade”, riu. “Só não sei se ele existe na rede pública”, especulava Paula. Antes de ser cobradora, ela foi recepcionista em São Paulo, mas não gostou de lá. Ela também não disse o porquê. Posteriormente, perguntei isso no Whatsapp e novamente ela não me respondeu. “Fui para ter novas experiências de vida. Mudar um pouco. Recebi até uma proposta de trabalho boa mas quis voltar mesmo. Era para ser assistente administrativa. Iam fazer o treinamento comigo”, disse a rodoviária, que me revelou apenas que mora com os pais, não tem filhos e não é casada. De volta ao Recife, ela fez bicos de garçonete e há dois anos e meio trabalha na Borborema como cobradora – profissão que, para ela, depende 100% da mão de obra humana (e para mim também).“Nenhuma máquina vai nos substituir nesse trabalho, não. Querem substituir, mas a gente conversa, a gente ajuda a pessoa a achar a parada, ajuda com informações sobre a cidade. Máquinas não ajudam nem informam”, lembrou Paula, referindo-se ao projeto do Grande Recife Consórcio de colocar catracas gigantes no lugar dos cobradores nos ônibus da RMR, para assim “diminuir os assaltos” – os passageiros não pagariam em dinheiro, mas com o cartão VEM, assunto que toco também no perfil de Cida neste projeto. Só esqueceram de avisar para o Consórcio que raramente o que se rouba em assalto à ônibus é o dinheiro que o cobrador transporta, e sim os bens dos passageiros e rodoviários. Essa visão das catracas uma coisa meio Robocop, meio Projeto Novo Recife, meio sinistra. Eu sinto que ninguém que trabalha na chefia dessa empresa andou de ônibus na vida.
“Eles querem encerrar a profissão de cobrador. Aos poucos vão nos substituindo. Por causa disso também que eu queria fazer esse curso. Mas acho que essa substituição não vai contribuir na segurança, não. Eu acho que empresário e político não faz nada para beneficiar povo. É em benefício deles mesmos. Afinal, eles vão lucrar com isso, mesmo que cause desemprego. São muitos rodoviários que iam perder o trabalho. E não é um trabalho ruim não, tem outros piores... Só é cansativo e tem riscos”, disse Paula, completando meus pensamentos. Aproveitei o assunto para perguntar de sua relação com o sindicato. “Sou a favor de todo tipo de greve. Apoiei a última e acho que é um direito de todos se manifestar. Mas o sindicato... teoricamente a gente paga, né. Mas não vejo muita coisa não. Essas coisas que eles oferecem (tipo corte de cabelo, escolinha para tirar carteira) é o mínimo né. Vê quanto eles ganham de cada motorista e cobrador. Motorista ainda paga mais. Quantos mil não tem com cada setenta e pouco, quarenta e pouco”, relatou. Aparentemente essa é uma queixa geral de todas as mulheres que entrevistei – e totalmente sintomática.
Paula considera sua profissão “um emprego para quem não quer mais estudar”. “À tarde, sem horário fixo, não dá para conciliar. Mesmo quem quer arrumar algo melhor, qual o tempo que tem para estudar? Aqui não é uma profissão, é uma função; tem gente que passa 10, 20 anos... se ele sair pra procurar outro emprego ele não vai estar preparado, entendeu? A menos que tenha trabalhado em algo diferente antes ou estudado. Mas acho difícil. Por isso considero um trabalho pra quem quer ficar nessa mesmo. Passa o tempo e você fica mais velho e não consegue mais muita coisa”, constatava a cobradora, num lamento discreto.“Se tivéssemos um horário fixo, daria para se planejar melhor. Uma parte boa daqui é que podemos usar o celular, acessar o zap, ouvir música no fone de ouvido, coisa que a maioria dos trabalhos não permite. Não uso fone de ouvido porque gosto de estar focada na viagem. Mas gosto de música, rock tipo Pitty, Legião Urbana. Ganhamos ticket de alimentação e comemos o almoço no intervalo. Só que não dá pra comprar todo dia né, tem que trazer de casa senão gasta muito”, disse Paula, quando eu pedi para que detalhasse melhor sua rotina no trabalho. Perguntei do livro, que ela tinha me dito que queria escrever na primeira vez que nos vimos, como seriam as histórias.
“Não consigo lembrar de nenhuma história marcante no ônibus. É que não tá vindo nada agora. Nada que marque, não. Contaria coisas engraçadas, do cotidiano. Histórias dos outros. Quando você quer lembrar assim é feito uma música né, você não lembra. Mas quando você relaxa num canto você vai lembrando das coisas. Também falaria do lado de fora, gosto de ver o lado de fora da viagem. A gente vê muita coisa”, disse Paula, alimentando em mim uma curiosidade que infelizmente vai fazer morada por um tempo. Perguntei o que ela gostava de ver do lado de fora, se ela gostava da cidade. “Recife tem muitos defeitos, mas é muito bonita. Arborizada, cheia de praias. Eu gosto de passar pela praia em algumas linhas. Ou então ali no Cais Estelita, que dá pra ver aquela paisagem, o mar e o rio. Recife é uma Veneza brasileira. Tem mais água do que terra”, descreveu. Quando ela falou do Estelita, tive curiosidade em saber se ela conhecia os protestos do Ocupe Estelita e da intenção de construírem torres ilegais no cais. Ela disse que sabia, mas não era a favor do movimento. Porque está parado, tem que desenvolver mesmo. Questionei. “Mas Paula, justamente por ser um lugar tão bonito, ele não devia desenvolver um espaço para todo mundo, em vez de algo privado?”. Sei lá se eu devia ter falado isso, mas não consegui evitar, afinal, porque restringir esse debate ao meu ciclo de amigos? Ela confessou que não estava informada sobre o que seria feito ali, se seriam prédios fechados, abertos. Mas que alguma coisa tinha que ter. “Se é pra tá abandonado o melhor é construir algo que gere renda e emprego”. Percebi que era preciso mais tempo para conversar sobre essas coisas todas por trás do discurso desenvolvimentista, e de todas as vezes que recebi orientações sobre não perder o foco da entrevista, e nesse caso o foco era Paula. Então seguimos – mas queria trocar essas ideias outra hora, ainda quero.
Passado e presente
Por falar pouco de si, o passado de Paula me interessava. Para minha alegria (e surpresa), ela me narrou um pouco dessas memórias. “Lembro que quando eu estudava, eu tinha tempo pra tudo. Eu tinha pique. Quem estuda tem mais pique, sabia? Hoje em dia eu só trabalho e não tenho mais isso... Quando eu estudava, fazia curso de magistério e estagiava, caminhava, praticava futebol e vôlei, pelo time feminino de vôlei do Náutico. Eu era magrinha e era muito divertido. E ainda trabalhava final de semana como garçonete, fazendo um bico, porque tinha pique pra tudo. Mas isso é a idade também, né? A idade chegando. Envelhecer é viver a vida. Recuperar coisas que você nunca fez. Mas antes tarde do que nunca né. Você olha pra trás e faz uma retrospectiva, do que você poderia ter feito. Meu arrependimento é que eu não fui graduada e não tenho tempo nem dinheiro para isso agora. O passar do tempo as atividades que você fazia você vai perdendo. Sinto falta de ter esse pique. Mas sei que depende de mim, né”, lembra, consciente.
Passagens e passageiros
“Acho que os passageiros não são mal educados não. A gente não sabe o dia a dia de cada um, né”, disse Paula, com uma empatia interessante. “Queria facilitar o acesso à mobilidade para as pessoas deficientes. Só o ônibus não resolve, não. Transportes alternativos para eles devia ser prioridade. Até porque por mais que tenha ônibus sempre é pouco para a população em horário de pico. E em vez de wi-fi que botassem ar condicionado”, completou. Nessa hora, uma passageira interrompeu e sugeriu mais segurança nos ônibus e mais cadeiras também, porque vai muita gente em pé. “Horário de pico todo ônibus lota. Imagina quem vem de Rio Doce pra Piedade em pé? Essa turma vem a maioria em pé, é coisa de quarenta sentados e cem em pé”, explicava Paula, seguindo empática com o povo com quem divide seu espaço de trabalho e dias. “Agora dia de jogo é um inferno. Um verdadeiro inferno. Já sofri confronto na PE-15, um matando o outro aqui do lado da catraca. Já cercaram ônibus pra pegar torcida contra torcida. Até as mulheres saem no tapa. Já caiu gente ensanguentada de sangue por cima de mim, sem aguentar de tanto cacete. Tem que vir polícia intervir, porque não sei como um ser humano pega uma pedra e joga aqui dentro do ônibus para atingir uma pessoa que tá com camisa de outro time. É uma sangueira. Essa turma também assalta passageiro, fuma dentro do ônibus, fazem um horror mesmo”, narrou a cobradora.
Em Recife, é comum o pânico se alastrar pela cidade, pelo rádio e pela internet nos dias de jogo devido à brigas de torcidas organizadas. Não foram raras as vezes que vi amigos cancelando planos em dias como esses, por medo de presenciar violência no transporte público. A população experimenta uma espécie de “estado de alerta” quando os times da capital jogam uns contra os outros, os clássicos – é um problema social negligenciado, que o Estado trata com paliativos esdrúxulos como a proibição de camisas das organizadas nos estádios ou abordagens violentas e indiscriminadas da polícia para cima da multidão. Paula também contou do dia que abordaram um ônibus e tiraram um menino de dentro para espancar na rua, “na covardia”, segundo ela. “Mesmo ele já desmaiado, todos batiam nele. Só porque ele estava com a camisa de um time adversário. Era um menino de família, eu vi. Eles iam matar esse menino. A sorte é que um carro apareceu e eles pararam. Isso não é torcedor, é vândalo – já vão sem pena para causar confusão. Eles fazem mal com qualquer pessoa se tiver com uma camisa diferente. Eu digo para todo mundo da minha família, não saia dia de jogo com camisa de outros times. Porque eles pegam qualquer um, até se for a pior pessoa do mundo, um inimigo pior que eles, o que eles fazem não justifica essa covardia”, disse a cobradora, cuidadosa.
Paula foi a única das cobradoras que me procurou depois da entrevista para perguntar como havia ficado. Não sei se ela estava desconfiada de alguma coisa ou curiosa. Falando em curiosidade, Paula me deixou muitas. Além das tais histórias do possível livro, outros pontos de sua vida pessoal não foram ditos na entrevista. Respeitei. Acho que isso a tornou uma personagem diferente, e também especial do seu jeito. Na mesma ocasião que ela me contatou, via Whatsapp, para saber do resultado da entrevista, eu também quis tirar com ela uma dúvida que me ocorreu depois do nosso encontro. “Porque você não gostou de São Paulo?”, perguntei. Até hoje ela não me respondeu, mas não tem problema, porque Paula é genuína com o que diz e até com seus silêncios. Gosto de lembrar de que o que era felicidade para ela: “É saber viver e ter paz consigo mesmo, ver as coisas com ânimo mesmo se você não estiver no emprego dos seus sonhos ou com tudo que quer. É estar bem no interior e ter paz, amando seu próximo. Eu sei que ninguém ama 100%, mas tem que se colocar no lugar do outro”, dizia, olhando pro espelho d’água da Ponte do Pina.