Meu caminho cruzou com o de Ilza numa tarde de sábado. Eu estava indo para uma festa em Setúbal e, para quem vem de Olinda, tem que descer no Derby e pegar um segundo ônibus que siga para esse peculiar bairro da Zona Sul recifense. Depois de esperar uns vinte minutos, o Setúbal/Conde da Boa Vista finalmente chegou. Mesmo lotado, subimos e eu a cumprimentei, no que ela respondeu sorrindo. Ao passar o VEM (Vale Metropolitano, bilhete único de Recife) no leitor digital, percebi - para minha surpresa - uma mensagem escrita de hidrocor, sob uma fita crepe, colada no leitor. A mensagem dizia “Bom dia prá você!!”. Ao passar da catraca, dava para ver na lateral outra mensagem em letras garrafais: “Você é Especial!”. Essa, inclusive, se repetia colada também atrás da cadeira de Ilza, na parte de cima do ônibus. Perguntei se foi ela que escreveu. Ela disse que sim, rindo como quem não esperava esse tipo de pergunta (ou atenção).
Talvez essa mensagem não faça diferença para você, que soe clichê ou vazia. Talvez ela seja vazia para quem recebe admiração, ternura e palavras de conforto de outras fontes, como amigos e família, de forma mais elaborada e polida. Mas essas mensagens estão lá por algum motivo, que em breve eu descobriria. Esse motivo me instigou e me levou a pensar que às vezes o clichê é necessário para muita gente. Gente que talvez esteja com problemas demais para análises profundas sobre si mesmo, para se dedicar a sua imagem e autoestima. Pessoas que não estão acostumadas com palavras que evoquem algum tipo de estímulo positivo, pessoas cujas rotinas não têm espaço para ternura. A gente tem, de vez em quando. A gente que eu digo é o povo que, igual a mim, tem amigo e mãe para dizer que nos ama. O ônibus é um lugar onde a solidão parece poética, mas para muita gente a solidão as acompanha quando descem de suas paradas e vão para casa. E é para essas pessoas que aquela mensagem impacta mais.
Poucos segundos depois de passar pela catraca, minha cabeça estava à mil. Claro que eu tinha que chamá-la ela para esse projeto. Eu queria entender várias coisas, e pensava sobre as pessoas que leram aquelas mensagens em dias difíceis. Convidei Ilza para o projeto já no final da viagem, no terminal de Setúbal. E para minha sorte, ela aceitou, e nos encontramos na semana seguinte.
Ilza Bezerra Castilho tem cinquenta e cinco anos e trabalha como cobradora há dois. Faz a linha Setúbal/Conde da Boa Vista. Quando a encontrei pela segunda vez, a mensagem colada na parte de cima do ônibus não estava mais lá. “Um colega arrancou”, disse Ilza. Quando fui fotografá-la, ela insistia em repetir que suas fotos queimariam minha câmera, e que ela ia quebrar com a feiúra. Ela repetiu isso por três vezes. Quando perguntei sobre assédio, ela me respondeu que nunca havia sofrido, afinal “vão falar o que para uma velha feito eu, né?”. É incrível como das mulheres é tirado o direito de envelhecer, porque envelhecer significa ganhar experiência e autonomia. Mulheres experientes, mais sábias e autônomas não são “atraentes” na sociedade patriarcal. Por outro lado, homens experientes e mais velhos, com linhas de expressão e cabelos brancos representam valores nobres, o que os torna “charmosos” e bonitos com o passar dos anos. Gostaria que Ilza soubesse que não precisa ser bonita, e sim se sentir bem consigo mesma. E que como todas as mulheres do mundo, ela tem o direito de envelhecer em paz.
Fascínio por mensagens
Logo que começamos a conversar, perguntei sobre as mensagens que ela escreveu e me chamaram a atenção. “Têm pessoas que chegam tão tristes aqui de manhã logo cedo, que eu penso que elas estão chateadas com algum problema. Algumas chegam tão mal humoradas que eu penso que só podem estar passando por dificuldade. Aí eu coloco essas mensagens para justamente tentar passar uma sensação boa para elas, eu pelo menos acho que é bom ler uma mensagem dizendo que eu sou especial”, afirmou Ilza.“Também botei ali um ‘bom dia’ porque assim a pessoa que não me vê fica pelo menos com meu bom dia. Algumas param e dizem ‘pra você também, cobradora!’. Às vezes elas se tocam quando leem esse bom dia, aí respondem. Eu acho interessante isso, penso que valeu a pena, porque mesmo que não seja todo mundo tem sempre alguém vai ver”, contou a cobradora.
Ela revelou gostar muito de mensagens, de vários tipos. “Me sinto bem. Gosto daquelas da internet, de mandar e receber pelo WhatsApp. Eu tinha um caderno em que gostava de escrever mensagens também, mas deixei de escrever porque no dia a dia os problemas pessoais me afastam um pouco. Mas gostava de criar umas coisinhas”, disse. Ilza também é evangélica e gosta muito das frases da Bíblia, e de escrever os versículos que gosta.
Solitude
Por definição, solitude é o estado de privacidade de uma pessoa, não significando, propriamente, estado de solidão. Pode representar o isolamento e a reclusão, voluntários ou impostos, porém não diretamente associados a sofrimento. Para mim, o estado de solitude descreve bem o modo como Ilza vive. Ela mora sozinha numa casa em Muribeca, onde vive há 26 anos. “Gosto de morar só. Não tem ninguém enchendo o saco”, riu. “É bom ter privacidade. Também gosto de lá porque parece interior. É muito tranquilo, um lugarzinho arejado. É bom pra quem gosta de sítio, tem muito sítio”, contou. Lá é onde Ilza gosta de passar as folgas. “Fico só em casa fazendo nada, é tão bom, é minha folga. Meu hobby é ler livros. O último foi o Caçador de Pipas, o filme já vi também, é muito bom. Mas gosto muito mesmo é de filmes românticos, porque sou romântica. Eu atualmente estou solteira porque estou separada, ele não me quis mais. Quis ficar solto de novo”, me disse rindo entre uma palavra e outra. “É só eu fechar a porta que ninguém sabe que eu estou em casa. Ninguém vem falar comigo. Meu filho ainda diz, ‘mainha, a gente nunca sabe quando a senhora tá em casa, a senhora nunca diz’. Aí eu digo: ué, e eu tenho que avisar é?”, relatou enquanto seguia rindo, muito confortável em suas palavras.
Entrevistei Ilza na quarta-feira da semana do seu aniversário, que havia sido no sábado. Soube disso porque lhe perguntei se ela tinha feito amigos naquela linha enquanto trabalhava. “Tenho amigos sim, as velhinhas que vêm aqui na frente junto comigo gostam de mim. Elas não têm muito com quem conversar, então elas fazem muita amizade comigo. Ganhei até presente ontem de uma delas, porque foi meu aniversário sábado e ela resolveu me dar uma lembrancinha. Ela me deu uma toalhinha bem linda e um sabonete desenhado, lindo também. Estão lá em casa, só trago uma toalhinha branca simples pro trabalho. Deus me livre usar uma bonita aqui, essa eu deixei em casa para não estragar! ela é bem delicada”, Ilza me descrevia com orgulho o único presente que ganhou de aniversário. “Só ganhei esse, visse? Não ganhei nada além desse presente da passageira. É a crise. Meu filho já me deu duas netas lindas né, então fico feliz e satisfeita. O importante é que estou com saúde e trabalhando”, revelou, no que eu fiquei pensando muito sobre estar só e ser só. Sobre a linha tênue dos afetos efêmeros e da solidão compartilhada naquele espaço. Até porque todos os dias nós, usuários do transporte público, compartilhamos solidões no ônibus. Algumas pessoas lêem, outras fazem uma metaviagem pela janela do ônibus enquanto ouvem música, sozinhas. O fone de ouvido é uma forma de ficar sozinho, mas não diz muito sobre solidão, mas sobre solitude. Sobre curtir sua própria companhia ali e talvez, chegando em casa, desfrutá-la com outra pessoa. Ao mesmo tempo, penso nas velhinhas amigas de Ilza, que não desfrutam de solitude, por justamente não estarem sós por opção, mas estão naquela situação por força do destino.
Familiaridades (ou Ilza Não Quer Falar de Passado)
Ilza tem dois filhos, André e Alexandre. André lhe deu duas netas e agora dará mais duas, pois sua esposa está grávida de gêmeos. Alexandre lhe deu um neto e uma neta. Mas ele já não está mais por perto. O filho mais velho de Ilza morreu. A própria Ilza não quis falar muito. Para ela, é preciso esquecer o passado para reescrever novas histórias. “Ele era usuário de drogas e isso o levou à morte. Por isso que eu tenho pena das pessoas na rua, sabe? Eu vivi essa história, eu vi de perto essa vida e é muito ruim, eu via ele nas ruas, largando tudo que tinha em casa para ir usar drogas. Não sei porque ele entrou nisso, mas sei que foi cedo. Aí uma coisa levou à outra. Eu lutei muito, mas ele não conseguiu deixar. Fiz tudo por ele, até internei, mas não adiantou. Mataram ele há três anos por causa de dívidas com droga. Ele tinha 35 anos. Ele deixou dois filhos. Uma menina de 4 anos e um menino de 8. Quem cuida deles é a mãe, mas eles são meus amores. Me esforço muito para ajudá-la. Tenho quatro netos e em breve terei seis, porque a minha nora está grávida de gêmeos, né. É bom ter muitos netos para preencher os vazios que a vida deixou”, revelou.
“São tão tristes minhas memórias do passado que eu não quero compartilhar nenhuma, não. É muito sofrimento que eu quero esquecer. Eu lembro às vezes, mas não gosto não, aí deixo pra lá. Acho que a única parte boa disso tudinho até hoje foram meus netos, e só. Principalmente os do meu filho, que morreu. Que são meus amores. À eles, eu sou mais apegada porque eu sei que eles são mais carentes de amor. Eu gosto de sempre estar com eles, eles me divertem. A menina, de 4 anos, é tão sabida. Ayshla, o nome dela. Mas eu chamava de Pietra brincando, porque é o nome do irmão dela. Aí agora ela já me corrige, porque sabe que eu tô brincando: “meu nome é Ayshla, não é Pietra!”, disse rindo. Ela é tão divertida. Acho que já tem até personalidade própria. A mãe deles mora lá onde eu moro também, aí a gente convive muito. Tem dias que ficam comigo, jantam, brincam e amanhecem o dia. É a parte boa da vida.
Já Pietro, de oito anos, é mais calado. Está melhor agora, mas ainda é quieto por conta da história do pai. Até porque a gente nunca mentiu para ele sobre isso. Não contávamos a história com os detalhes, mas ele sabe que papai do céu o levou. Quando ele perguntava do pai, eu dizia que ele estava doente, num médico. No dia da morte dele, ele perguntou: ‘vovó, você vai buscar ele no médico hoje?’ e eu disse ‘não, dessa vez ele não vai voltar’. Como meu filho era constantemente internado, ele já havia se acostumado com isso de eu trazer ele da clínica e vivia perguntando quando ele ia voltar. Isso me deixava muito triste. Ainda bem que agora ele não pergunta mais. ‘Vou não bebê, não vou mais porque papai do céu levou agora’. Ele foi se conformando, mas fala que lembra dele”, disse enquanto emendava uma respiração seguida de um silêncio rápido.
“Essas são as memórias tristes que a gente vai deixando pra trás e tentando escrever uma nova. Também vou tentar escrever uma para mim. Minha irmã veio me perguntar se eu estava bem essa semana. E eu disse para ela assim: “mulher, eu tô tranquila. Não sei se é tranquilidade ou se é... sei lá, a sensação de que a minha batalha eu já enfrentei, o resto agora é só deixar rolar”, refletia a cobradora. Por muitas vezes eu ouvi sobre a palavra resignação e seu significado. Eu só não tinha visto um exemplo dela tão perto de mim.
Labutas
Ilza nunca trabalhou pouco. Antes de ser cobradora, fazia limpeza geral em supermercados, como terceirizada de uma empresa especializada. “Quando eu trabalhava nos supermercados Extrabom e Arco-Íris era vassoura o dia todo, empurrando aqueles carrinhos de limpeza. Muito cansativo. Graças a Deus escapei. Foi o que me fez mudar de profissão para cobradora”, disse.Além disso, também trabalhava como empregada doméstica. Hoje, como cobradora, sai de casa na Muribeca às 04h da manhã para chegar às 06h no terminal de Setúbal. “Não é muito cansativo, mas quando você chega em casa, toma um banho e deita, seu corpo sente o dia”, disse.
“Eu não sei definir o que é felicidade, mas acho que principalmente ter um emprego e saúde para sair de casa e ir trabalhar. Tem gente que quer e não consegue, né? Hoje minha colega perguntou se eu estou gostando do serviço, e eu disse que estou, pois vejo a rua e as pessoas. Ela perguntou se eu não me incomodava com os passageiros ignorantes. Eu disse que eles às vezes são sim, mas tento não ligar. Essa colega infelizmente não está gostando de ser cobradora. O problema é que ela se estressa muito fácil. Aconselhei que ela não se estressasse, senão vai morrer. Tem que relaxar pra não deixar de trabalhar”, explicou. Perguntei sobre a época em que ela trabalhou na casa dos outros. Ela falou pouco. Disse que fazia faxina. Que não era bom, não. Cada patrão nó cego danado, ela disse. Que ia levando, empurrando com a barriga como o povo diz. “Quando não dava mais para aguentar, eu ia embora. Não era de aguentar desaforo não, já pedia minhas contas e não voltava mais”. Perguntei se ela sofreu algum tipo de violência enquanto doméstica. “Fisicamente nunca fui violentada, mas moralmente tinham patroas que eram terríveis, terríveis. Via muitas injustiças com as babás que trabalhavam enquanto eu faxinava e queria poder ajudá-las mas não tinha como falar. Aí eu ia embora”. Ilza trabalhava em Piedade e Boa Viagem, principalmente. “Mas esse mundo é grande para trabalhar. Tô bem agora, vivendo devagarzinho carregando o povo para lá e para cá”, disse, em tom de alívio e final feliz.
Por coincidência, quando o ônibus chegou à Praça do Diario, entrou uma moça que era empregada doméstica atualmente. E ela sentou do meu lado e começou a puxar conversa. Disse para Ilza que estava cansada e que todo dia era a mesma coisa, e que a rotina cansa. A moça começa a interagir comigo quando comento com Ilza que ainda eram 6h15 da manhã e o lugar onde eu trabalho só abriria às 08h. Ilza disse “nossa! onde é esse lugar pra eu pedir trabalho também”, e riu. A moça interferiu sugerindo que eu fosse fazer hora na praça de Boa Viagem. “Entra no Bompreço para olhar as coisas, ou ver uns pombos na praça. Faz de conta que tá nos Estados Unidos, que nem nos filmes de Nova York que tem muito pombo”. Nós três rimos. O diálogo seguiu mais ou menos assim:
“Recife tem muito pombo. No Pátio de São Pedro então, me dá muita agonia”, disse Ilza. “E na Praça do Diario? Oxe, tem demais”, retrucou a moça (lamento não ter perguntado seu nome, sério. Em minha defesa, eram 6h15 da manhã). “Vamos trabalhar. É muita batalha”, divagou Ilza. “Quando eu pegava de 9h eu também pegava o ônibus mais cedo e ia lanchar no Bompreço ou fazer hora lá em Boa Viagem. Gostava de ficar sentada esperando a hora na praça também”, voltava pro assunto a moça ao meu lado, que tinha pele negra, cabelos presos num coque e segurava uma bolsa grande. “Lá na casa onde tu trabalha tá valendo essa lei de agora?”, perguntou Ilza. “Sim, se passar é hora extra. Aí 16h eu largo. Eu não assino ponto não, porque minha patroa é tranquila, mas tem patroas das meninas do prédio que têm que assinar”, disse.
Foi aí que Ilza se abriu a falar mais um pouco sobre a realidade que vivera anos atrás. “Nossa, já tive uma (patroa) que era triste. Ela queria que eu chegasse de 6h da manhã para fazer suco de laranja na hora que ela acordasse”. A moça disse que está trabalhando para mesma família há 18 anos. “É de família já né? Quer dizer, entre aspas”, falou Ilza. “Rapaz, confesso à você que nunca consegui ficar tanto tempo na casa dos outros não. O máximo que eu passei foram 4 anos. Nunca tive paciência”, disse Ilza. Ela me aprecia a pessoa mais lúcida do mundo naquele momento. “Enjoava mesmo de certas atitudes, como obrigar a babá a trabalhar final de semana mesmo com menino já com 10 anos. Sei lá, não conseguia ficar”, disse Ilza. A conversa seguiu: “dezoito anos é muito tempo”, ratificou a moça.
Engraçado como atualmente está rolando um debate na classe média brasileira, principalmente nas redes sociais, sobre como essas pessoas encaram a criação dos filhos como um trabalho terceirizado. Muitas vezes acham que estar com os filhos é “ficar de babá”, e não uma obrigação – ignorando que muitas vezes as tais babás têm seus próprios filhos. Fala-se em herança escravocrata e provincianismos, mas a classe média só está percebendo agora o que Ilza já percebia há bastante tempo. Nada como estar do outro lado da moeda – e também ouvi-lo. O assunto acabou enveredando para assaltos e segurança. “Todo dia eu peço à Deus para ter tranquilidade e ficar calma caso aconteça um assalto, porque a gente não sabe como vai reagir. E tem tanto assalto à ônibus hoje em dia que eu só fico torcendo para que quando for comigo eu tenha calma”, comentou Ilza. Nossa conversa encerrou mais ou menos aí.
Desci do ônibus divagando sobre como a minha percepção sobre Ilza foi mudando ao longo das nossas conversas. Isso me chamou a atenção porque o que havia despertado meu interesse em entrevistá-la foram justamente as placas felizes e mensagens motivacionais que ela escreveu. Talvez eu não esperasse que por trás disso existisse um histórico de memórias tristes, mas prontas para serem reescritas pela própria Ilza. Ela mesma estava buscando outras narrativas para ilustrar sua trajetória, coisa bonita de perceber e presenciar. Que seja um leve percurso.